Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

Conversa com um amigo: O tratamento em fotografia digital

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Conversa com um amigo: O tratamento em fotografia digital

 

“Assim é, se lhe parece” – Luigi Pirandello

 

Um amigo cometou a foto que ilustra esse artigo dizendo, não se razão, que lhe incomodava um pouco um excesso de cores. Disse, embora por delicadeza ressalvando que minhas fotos não iam tão longe:

Já vi um mundo de fotos na internet em que a manipulação por software é tão exagerada que tenho a impressão que o sujeito mobiliza suas emoções muito mais neste ato de manipualção do que no momento de fotografar. Assim, o tema passa a ser tão somente um pretexto e o produto – a foto -perde quase que totalmente o contato com ele. O mundo destes “fotógrafos” é, assim, cada vez mais o mundo digital. Isto me incomoda muito pois sem querer, obviamente, que a fotografia seja uma cópia do real, não vejo sentido em algo cada vez mais distanciado da realidade.”

Respondi, e trancrevo abaixo a resposta, abrindo aqui uma conversa com quem quiser dela participar:

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Obrigado pelo comentário, franco e delicado ao mesmo tempo. Vou lhe dar meu ponto de vista, o ponto de vista que norteia meu processo de criação, e, aliás, hoje mais tarde pretendia escrever um artigo para o blog sobre isso, de modo que a conversa ajuda.

Começo dizendo que há várias fotos, ou melhor, várias finalidades para as fotos. Uma das finalidades é postar na rede, outra fazer algo mais elaborado imprimindo em papel,por exemplo. A imensa maioria das fotos mostradas tem por objetivo serem postadas na rede. Deixemos isso dito guardado para daqui a pouco.

A segunda questão é que as fotos digitais são profundamente diferentes das fotos em filme. A foto feita com filme aproveita a curva de contraste dele, que já é uma curva desenhada, e aproveita as cores dele, que são típicas de cada filme. Muitos dos filmes possuem cores extravagantes mas são considerados bons filmes. Um exemplo é o Kodachrome, o clássico filme reversível cujos contrastes, os pretos, etc, aproximam-se bastante até das cores que uso às vezes. Outro é o Provia, contrastado, azulado, seco. Mesmo os filmes não reversíveis (negativo colorido) são bastante característicos: o ProImage da Kodak tem cores meio douradas, alguns Agfa vermelhos intensos. No caso dos filmes em  Preto e Branco, de onde vem a fama do Tri-X Kodak a não ser de sua curva de contraste completamente dramática e anti-natural?

Bem, o fotógrafo ao usar a película conta, mesmo sem admitir, com certa desnaturalização da representação, e a fotografia em Preto e Branco é em si uma enorme desnaturalização.

Ora, a fotografia digital é oposta. Ao invés de contrastes rápidos, tem contrastes lentos. Na verdade a fotografia digital é um enorme aglomerado de meio tons relativamente sem graça. Além disso, a fotografia digital não nasce pronta desde sempre pela revelação, ela é sempre feita. Pode ser feita pelo software da câmera, pode ser feita de outro modo ao converter o arquivo RAW de forma personalizada, mas é sempre feita. Na câmera, por prudência dos programadores, ela é feita menos aguda porque isso evita certos problemas decorrentes da captura que o leigo não saberia corrigir nem evitar, problemas que exigiriam um ajuste específico de cada foto, impossível pelo software. Desarte, nossa atitude em relação a ela não pode ser a mesma que a atitude em relação ao filme, é preciso, sim, como dito por você, ter certo amor à etapa de tratamento. Essa etapa de tratamento cresce bastante em relação à etapa de exposição. Nessa etapa de tratamento é que se tenta tranformar aquela sopa sem graça de meios tons em algo que tenha contraste cortado.

O David Hockney, artista plástico e estudioso da arte, disse que a fotografia de nossa época não tem mais a idéia de realismo nela embutida, e que é cada vez mais semelhante à pintura. O tratamento de uma foto, ou, usando o termo americano, o desenvolvimento de uma foto é um processo mais parecido com desenhar do que com qualquer outra coisa. Nele vamos buscando certas ênfases, vamos enfatizando coisas. mesmo na fotografia em filme isso acontecia, o Ansel Adams fazia isso sempre. Ele tem uma frase em que fala disso cabalmente:

“Dodging e burning são passos necessários para cuidarmos dos erros que Deus cometeu ao estabelecer os relacionamentos tonais.“ A. Adams.

No meu caso, gosto tanto de fotografar quanto de tratar, ambas as coisas me agradam. Ao fotografar tudo é uma busca de exatidão. Não por acaso, não corto (cropo) fotos, elas são o frame capturado integralmente, e, nesse caso do quadrado, são o frame que sobra da fita isolante, isto é: cortei como vi ao fazer a foto porque botei fita isolante no LCD para só ver o quadrado central da imagem. A composição, a posição dos elementos, a exposição, isso é a matéria do instante do click. Mas depois há outro momento, momento no qual estou sozinho com a matéria prima, que é a imagem bruta digital, e nela persigo fazer uma narrativa em um sentido definido, sentido esse que fica amortecido pela característica da imagem digital como sai da câmera. Gosto também desse momento, é um momento introspectivo e, paradoxalmente, táctil, a matéria prima responde ao tratamento e vamos seguindo as modificações, seguindo um caminho que é parcialmente sugerido pela própria resposta da matéria.

Por vezes fico sozinho diante da tela tratando e lembro-me da infância quando desenhava sozinho no meu quarto.

Dito isso, volto aqui ao que falei no início. E, geral são mostradas fotos preparadas para web, as primeiras abordagens delas. Fotos que sofreram uma primeira intervenção, e a maioria, como esta, não sofrerá uma segunda nunca. Quando a foto me agrada muito, então começo tudo de novo a partir do zero porém já tendo “vivido” com aquela foto, e geralmente consigo um resultado mais refinado, mas isso só para poucas com objetivo diverso da WEB.

Obrigado pelo comentário, é uma interessante visão a sua, não o vejo errado, mas a fotografia como é hoje me empurra para certas direções onde estão, suponho, as melhores oportunidades do meio.

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Obs: A fotografia mostrada é resultado de uma brincadeira. Botei, em uma câmera compacta, duas tiras de fita isolante nas laterais do LCD de modo que sobrasse apenas o quadrado central. Com isso posso pensar na composição quadrada no momento mesmo do click, e o crop posterior, embora seja um crop do arquivo, não é um crop em relação ao ato compositivo.

Written by Ivan de Almeida

15 de janeiro de 2012 às 7:47 pm

15 Respostas

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  1. Muitos amigos que eram ‘feras” nos anos 80, nao conseguiram se adaptar a latitude e ao contraste do digital, como resultado, deixaram as novas cameras no fundo do armario!
    Abs
    Molina

    Molina

    15 de janeiro de 2012 at 10:43 pm

    • É preciso entender que a fotografia digital é aberta, ela depende de criação posterior e a facilita. Quem não entende isso passa a vida se queixando. No caso desse amigo que fez esse comentário isso não se aplica, porque ele não é fotógrafo, mas de todo modo a idéia da foto natural termina aparecendo.
      Abraços

      Ivan de Almeida

      15 de janeiro de 2012 at 11:15 pm

    • Essa questão da latitude e a questão da distribuição dos tons da fotografia digital são críticas. Elas nos obrigam à intervenção.

      Ivan de Almeida

      16 de janeiro de 2012 at 12:36 pm

  2. Belo post, Ivan. Costumo dizer que em filme toda foto é natural, porque é natural que saia daquele jeito… Eu gosto do processo criativo da película, onde você se condiciona a ver as coisas da maneira que seu suporte vê. Vemos o mundo de uma forma diferente, procuramos coisas diferentes se temos na câmera Kodachrome ou Tri-X.

    Após algum tempo trabalhando dessa maneira, fica fácil fazer isso com o digital – trabalhar em “pacotes” pré estabelecidos de contraste e cor. Mas sem essa experiência, o processo criativo no digital fica radicalmente diferente. Fotografamos, e desenvolvemos alguma coisa a partir daquilo. Interação em duas etapas.

    Não que eu defenda um processo criativo em detrimento de outro, mas pessoalmente, acredito que a criatividade nasce da limitação – e quanto mais eu conseguir antecipar o que minha câmera fará, mais tranquilo e focado fica meu trabalho. Quantas vezes na vida eu descartei imagens que capturei, mas que simplesmente morreram na pós produção, simplesmente porque não consegui encontrar um caminho nessa exploração posterior.

    No fim das contas, pessoalmente, essa flexibilidade do arquivo RAW – ele pode se tornar qualquer coisa – me paralisa por excesso de opção, e não é somente na frente do computador.

    Alex Villegas

    16 de janeiro de 2012 at 11:57 am

    • Que maravilha de comentário, Alex! Esta postagem já nasce de uma fina questão de um amigo, agora recebe outro comentário, de outro, que a refina ainda mais.

      Há várias coisas interessante no seu comentário, cada uma delas merece ser destacada. A primeira isso: “em filme toda foto é natural, porque é natural que saia daquele jeito”. Mesmo não sendo a resposta do filme natural, é natural que ela se produza e nós sabemos mais ou menos o que se produzirá e aceitamos a resposta.

      No meu caso, não trabalho em pacotes pré estabelecidos, embora tenha desenvolvido alguns sets de conversão do RAW que por vezes uso. Mas é de fato uma criação em duas etapas, e, viciado em RAW que sou, minha captura é já modelada para a segunda etapa, para nela desenvolver a foto. Gosto da segunda etapa, ela é de fato muito parecida com o desenho. Esta postagem no blog foi uma coincidência, porque o Adair, um amigo com quem converso no Multiply, fez um comentário sobre esta foto e me levou à resposta, e coicidentemente eu pretendia ontem publicar um artigo falando da relação entre desenhar/pintar e o tratamento digital.

      É claro que essa semelhança de atitude acontece devido à natureza aberta (demasiadamente aberta) da imagem digital em RAW e da imagem digital em geral. Provavelmente será o próximo artigo, e esse terá sido uma introdução luxuosa ao assunto.

      Assim como você, considero que as limitações e a criatividade andam juntas. Não existe a criatividade sem uma tensão de limitação, a criatividade não se faz no vácuo como se pensa por aí.

      Obrigado e um grande abraço,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      16 de janeiro de 2012 at 12:35 pm

  3. Quem faz a foto em JPEG e configura a câmera pra dar mais contraste, ajusta modos de cores, correção de vinheta de lente, brilho, redução de ruído e sei mais quantos ajustes existem porque não uso nenhum, não está fazendo nada menos do que tratando a foto… só que de uma forma menos intuitiva e mais automática.

    Engana-se quem faz isso e diz que é totalmente contra o tratamento…

    Luciano Queiroz

    16 de janeiro de 2012 at 3:53 pm

    • Sim, porque a fotografia digital é construída, sempre construída. Isso é sua característica, então, de uma forma ou de outra, esbarramos nisso.

      Obrigado pelo comentário,
      Abraços

      Ivan de Almeida

      16 de janeiro de 2012 at 9:30 pm

    • Caro Luciano,
      há diferenças significativas em ajustar a câmera, como você descreveu, e tratar a foto num software.

      A principal delas é que por mais que o fotógrafo ajuste a câmera ele terá como produto a captura de um momento específico de relação com o real, com o motivo que ele escolheu fotografar.

      O tratamento posteriro, no computador, perde totalmente este momento e isto implica em questões estéticas que me interessam muito.

      adairjr

      17 de janeiro de 2012 at 2:02 pm

      • Adair;

        As coisas não são exatamente assim.

        Porque há uma limitação nos programas residentes na câmera, uma limitação que visa compatibilizá-la com a expectativa do usuário comum. O usuário comum não é uma pessoa treinada em tratamento, então ela precisa obter algo médio que a satisfaça, e, creia, os labs ao imprimirem as fotos dão uma bola em cores e sharp, pelo menos.

        De todo modo, não há uma captura realista, mas sim convencional.

        Talvez a grande mitologia da fotografia é essa imaginada relação com o real. Quanto mais fazemos fotografia, menos essa mitologia nos convence, porque vamos vendo que a fotografia nunca foi isso. Há algo paradoxal na fotografia, porque temos dois pólos, o pólo que é “aquilo fora da câmera” e o pólo do ato fotográfico que é uma série de escolhas que dará forma à fotografia. Além disso há as traduções que os filmes fazem, que os programas residentes fazem no caso das digitais, ou que a conversão do RAW possibilita personalizadamente. Nenhuma dessas etapas é passiva. basta notar que o Ansel Adams, citado no artigo, ecreveu tr~es livros, A Cãmera, O Negativo, A Cópia, e o primeiro apenas refere-se ao objeto mecãnico-ótico, os dois outros referem-se às etapas de tratamento em filme. Então a fotografia com as etapas posteriores passivas nunca existiu, exceto para o fotógrafo ocasional que não via as tranformações que eram feitas na imagem, só deixava no laboratório e pegava depois, ou que agora fotografa com digital e acha que o que sai da câmera é puro.

        É preciso compreender que o fotógrafo dedicado quer sempre mais. Quer mais controle, quer mais perfeição, quer mais nitidez, quer mais profundidade de cor, quer mais possibilidades expressivas. ora, isso o leva, como evlu o A.Adams, ao tratamento das fotografias, e, no caso da digital, a fotografar em RAW, arquivo que é aberto por natureza.

        Acho que sua questão não deveria ser quanto ao tratamento, mas sim quanto ao resultado do tratamento, no sentido que o incomoda quando esse passa da conta. De que conta? de uma conta pessoal sua, que é pertinente porque todos temos uma conta pessoal. Como tratar, isso não importa, desde que, para cada um de nós, o resultado esteja dentro dos limites que consideramos pertinentes para a imagem fotográfica. Essa me parece sua questão, ou, pelo menos, a questão que a mim tocou e com a qual venho caminhando.

        O tratamento extra-câmera, essa não me parece questão, pois é parte da história da fotografia.

        Ivan de Almeida

        17 de janeiro de 2012 at 2:17 pm

  4. Sei que minha pergunta talvez nao faca sentido, mas a turma da velha guarda da fotografia;

    Hoje em dia voces escrevem carta ou usa e-mail….?

    Digital Capture

    21 de janeiro de 2012 at 4:40 pm

    • Essa pergunta, uma pergunta retórica, coloca para mim a coisa principal. Somos passageiros de nosso tempo, não somos pilotos. Nossas oportunidades se encontram inscritas naquelas oferecidas por nosso tempo. No caso da fotografia atual (evitarei chamar de digital) as possibilidades facilitadas de tratamento estão inscritas nas possibilidades e nas questões atuais. É impossível fazer como avestruz e enfiar a cabeça na areia achando que a questão se resolverá a partir de uma negativa pessoal qualquer. Temos de lidar com ela, vivê-la, digerí-la. Essa é nossa missão, é o que a época nos apresenta.

      Obrigado pelo comentário, curto mas preciso.
      Abraços

      Ivan de Almeida

      31 de janeiro de 2012 at 3:43 pm

  5. É curioso como as discussões descambam para direções inusitadas e indesejadas. Em nenhum momento neguei o tratamento digital nem me coloquei contra “nosso tempo”.
    Coloquei uma questão de natureza estética, apenas isto.

    adairjr

    6 de fevereiro de 2012 at 11:13 am

    • Adair, pela minha parte, compreendi perfeitamente sua questão, como conversamos no Multiply. Contudo, aqui transplantada, a questão é observada de vários outros ãngulos por outros e cada um a recebe e interpreta dentro de suas preocupações, dando ao assunto um lugar próprio no balanço de coisas que considera, que não é exatamente igual -nem poderia- ao balanço de questões iniciais.

      Pela minha parte, também, como autor do blog, procuro manter diálogo com cada pessoa que aqui comenta, e tento, até para arejar as questões, ser atento àquilo que repercutiu na pessoa e dialogar com isso. Então o debate aqui é multifacetado, mais que contraditório. Aceito e agradeço a multifacetação que acontece com os comentários que são originados da recepção de cada um do que aqui foi escrito, sem procurar trazer novamente o debate para a questão motivadora do texto necessariamente, visto as novas questões serem também interessantes e enriquecedoras.

      O diálogo, e pretendo sempre que este blog o propicie, pois é uma de suas grandes riquezas os comentários aqui feitos, implica em se aceitar que derive, aceitar que fuja um pouco da questão inicial e abra novas vertentes.

      No que tange à sua colocação, creo que algumas pessoas interpretaram desse modo porque há sim um fundamento de naturalidade no que você disse, uma suposição de naturalidade na imagem fotográfica que é difícil para alguém muito envolvido com fotografia aceitar. Quem está fora acredita mais na imagem fotográfica do que quem está dentro, digamos assim, porque quem está dentro sabe seu caráter de construção em diversas etapas. Não totalmente por acaso, o próximo artigo que deve vir à luz esta semana chamar-se-á “mentir para contar a verdade”.

      Grande abraço,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      6 de fevereiro de 2012 at 12:12 pm

  6. Fotografar é retratar um momento, retratar quer dizer: descrever (uma paisagem, uma pessoal…). Ao descrever qualquer coisa, o ser humano coloca muito de si mesmo, até para dar enfase a sua opinião. A arte na fotografia esta justamente na maneira de retrarmos o momento. Assim com a colaboração da tecnologia atual, fica muito mais facil darmos vazão ás nossas opiniõe, diferente dos tempos da fotografia analogica, muito limitada. gostei do artigo e concordo plenamente com sua opinião.
    Abraços
    André Jorge

    André Jorge

    7 de fevereiro de 2013 at 3:01 pm

    • A digital nos faz laboratoristas, como muitos dos ótimos em filme PB eram.
      Abraços

      Ivan de Almeida

      7 de fevereiro de 2013 at 3:29 pm


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