Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

PARA QUEM?

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Para quem?

o1 de janeiro de 2012

A única identidade que a gente reconhece na psicanálise é a solução que cada um encontra ao seu gozo – a não existência da relação sexual. -Teresa Genesini (1)

Venho percebendo que muito do meu prazer de fotografar não está em produzir uma grande imagem, mas sim em jogar um jogo visual que tem limites, um pequeno jogo criativo no qual uma câmera e uma circunstância, e depois uma abordagem de desenvolvimento da imagem sejam o escopo, e a produção da imagem visualmente atraente ou instigante é apenas um parâmetro, mais que uma finalidade. Um parâmetro do jogo.

Não há como não deixar de reconhecer ser isso uma atitude onanista. Jogar jogos consigo mesmo, mais ou menos indiferente à receptividade do mundo, essa também tão somente um parâmetro e não exatamente a finalidade, é uma espécie de onanismo.

Ontem, dia 31 de dezembro, véspera de 2012, saí de bicicleta com uma câmera compacta no bolso pedalando pela orla. Havia preparado a compacta colocando no LCD (ela não tem viewfinder) duas tiras de fita isolante, uma em cada lateral, deixando apenas um quadrado no meio para ver a imagem. Meu objetivo foi fazer fotos quadradas, mas sem para isso recortar posteriormente uma foto feita com outro raciocínio compositivo. Queria honestidade na composição, queria que a foto exprimisse meu raciocínio visual da hora do disparo. Então as fitas isolantes redefiniam o espaço compositivo de modo que depois o recorte se tornou apenas eliminação do que já não era fotografia. Explico: Um dos meus dogmas pessoais, que aplico ao meu fotografar, é não fazer recortes corretores na fotografia. Não julgo o mérito da fotografia alheia por isso, mas a minha faço assim, e quando vejo a necessidade do recorte sinto isso como um atestado de falha, um atestado de que minha análise visual foi fraca diante da circunstância, ao mesmo tempo em que me rejubilo quando percebo o acerto na composição com o frame inteiro.

Ora, quem me obriga a esse jogo? Ninguém. Sei que há outros fotógrafos com igual dogma, e, naturalmente, admiro suas fotografias, esse viés as faz mais interessantes para mim porque posso perscrutar na foto o raciocínio visual que governou sua feitura, posso pensar junto, pensar em paralelo, entender o jogo. Mas fora desse prazer estético meu, o mundo não me obriga a não recortar.

Fazer o LCD quadrado para fotografar quadrado nada mais é que introduzir uma regra no jogo, regra essa que será indiferente ao observador só afetando o autor no seu processo de feitura.

Nessa altura sou obrigado a concordar com o Lacan: não existe relação sexual! (1) Esta conclusão lacaniana, que aprofunda o pensamento freudiano, espanta quando a ouvimos pela primeira vez (embora quando a ouvi pela primeira vez tenha pensado comigo mesmo: “é óbvio”), mas dá conta do fato simples de que a pulsão nasce do organismo, não vem de fora. O fato de o organismo buscar no que está fora o desaguar das tensões da pulsão não significa que o que está fora, o outro, seja a razão da ação. Seguindo a idéia da Autopoiesis do Humberto Maturana (2) e do Francisco Varela, toda ação do organismo visa restaurar seu estado de equilíbrio homeoestático. É nisso que está o impulso, não no externo, no outro, na Arte (no caso da fotografia), na Fama, na Glória. Essas coisas são apenas respostas específicas, contingentes e aparentes para algo que não é nem específico, nem contingente, nem aparente.

Quando se diz que essas coisas são as respostas, seguindo a idéia do Lacan (com alguma liberdade, pela qual o Lacan não é responsável e os lacanianos ficariam horrorizados), se está mentindo. Está-se dizendo que as relações sexuais são possíveis, ou, estendendo o conceito, que fazemos alguma atividade para os outros. Ora, nossa vida em sociedade parece exigir mentirmos, é sempre preciso, parece, elegermos uma causa, uma meta transcendente, nobre, uma busca “séria”, quando na verdade tudo o que fazemos ou é mera ação para provermo-nos de alimentos, ou então onanismo – falsa relação sexual. Quando dizemos que nosso objetivo não está exatamente na imagem que ao ser exposta seja reconhecida pelo outro como bela ou boa, quando dizemos que no fundo o outro não importa, que nosso processo criativo não é voltado para o outro senão parametricamente, parece que estamos dizendo um absurdo e estamos cheios de soberba e de pretensão vazia, que nos pretendemos “artistas incompreendidos” ou outra coisa ridícula qualquer, mas de fato não é nada a não ser o reconhecimento de que não existe relação sexual, ou seja, não é para o outro que nós produzimos, e o outro é tão somente um parâmetro.

Porém, isso não esgota a coisa, porque, bem ou mal, buscamos rondar a estética que é reconhecida como estética. Ou seja, o outro, embora não seja o motivo, mantém-se como parâmetro. A determinação prática da não relação, apesar de tudo, implica em um acontecer (um fazer) dentro da cultura, dentro dos valores formais e narrativos de uma cultura, mesmo quando a obra aparentemente os contesta. Somos dentro dessa cultura, que, por isso, conforma tudo.

Poderíamos dizer, no caso da fotografia, que nela só há duas posições: autoria e mentira (ressalvando aquilo que se faz, bem ou mal, para o sustento). Mentira é tudo o que não é autoria, tudo aquilo que é feito com a ilusão de ser objetivamente bom, de ser pautado por parâmetros externos sem ambigüidade e portanto validadores. Aí também há onanismo, mas um onanismo iludido que se ignora, imaginando haver valores e objetivos externos. Na autoria também há mentira, aliás, sempre há alguma, mas sobre outros pontos.

O autor namora a si mesmo. Não o mundo, não o observador de suas fotos.

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(1) http://www.psicanaliselacaniana.com/mural/textos/jorgeForbes_NoIPLA_asDuasClinicas.html

(2) http://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_Maturana

12 Respostas

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  1. Realmente uma great idea!!

    Malicky

    1 de janeiro de 2012 at 5:04 pm

    • Obrigado, Malick.
      Às vezes as coisas óbvias são espantosas -risos.

      Ivan de Almeida

      1 de janeiro de 2012 at 6:19 pm

  2. Onde entra o egoísmo aí, Ivan?
    O egoísmo de nós, “autores para nós mesmos/de nós mesmos” …

    peridapituba

    1 de janeiro de 2012 at 6:35 pm

    • Peri, o egoísmo é uma condição humana inerente, há pouquíssimos episódios nos quais ele é menos presente. Aliás, o artigo fala disso mesmo.

      Ivan de Almeida

      1 de janeiro de 2012 at 7:36 pm

  3. “Toda criança que joga se comporta como um poeta, enquanto cria um mundo para si, ou, mais exatamente, transpõe as coisas do mundo em que vive para uma ordem nova que lhe convém (…) O poeta faz como a criança que joga; cria um mundo imaginário que leva muito a sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, distinguindo-o claramente da realidade. (Freud, 1910)”.

    O jogo para a criança, salvo estruturas patológicas, é uma forma de comunicação, onde ela inventa um mundo, elabora seus aspectos internos e os eventos externos que lhe são impactantes. Desta forma, o jogo não se constitui como uma simples brincadeira, e é fundante do sujeito.

    O brinquedo e o brincar são os melhores representantes psíquicos dos processos interiores da criança. Eles estão sempre em significação, na busca do sentido.
    Por trás das emoções como formas repetitivas de atuação nos brinquedos e jogos da criança, encontram-se outros conteúdos, que Freud assinala como “Mais Além do Princípio do Prazer”, onde tais conteúdos tanto podem ser da ordem do prazer ou não.

    O mais importante:
    os objetos são sempre erotizados, e é desta erotização que vêm as correntes libidinais, que se repetem, repetem, repetem …

    O que achei mais interessante em suas colocações, Ivan, foi a fita “isolante” em cada lateral, o que me parece a tentativa de um fechamento de um circuito, ou bordas/limites às suas imagens.

    PS: acho linda a sua busca na fotografia.
    Abraços,
    Rita

    Rita Guimarães

    2 de janeiro de 2012 at 1:32 am

    • Que comentário legal, Rita!

      A fita isolante não é tudo isso, é mais simples. Na fotografia há alguns formatos tradicionais, o formato 2:3 dos negativos 35mm e das câmeras 6X9, por exemplo. Mas há um formato tradicional que não existe nas câmeras digitais comuns, que é o formato quadrado, muito comum em película nas câmeras do tipo Rolleiflex e outras. Os formatos determinam certas atitudes compositivas, não é a mesma coisa compor com o quadrado e compor com o 3:4 das digitais ou com o 2:3 do filme 35mm e de digitais também.

      A fita isolante me permite, com um sensor cujo formato e 3:4, compor no quadrado vendo a composição no quadrado e raciocinando sobre ela. Não é uma restrição, é uma escolha de regras do jogo que são mais interessantes até do que as do 3:4.

      Mas, sim, escolher isso é escolher (inventar) um jogo. É esse aspecto da gratuidade que evidencia o jogo pessoal, não transpessoal. Fosse transpessoal, não precisaria da fita, bastaria cortar a foto depois para enquadradá-la, sem preocupação com o quadrado já nascer no click.

      Abraços

      Ivan de Almeida

      2 de janeiro de 2012 at 1:46 am

  4. Muitas vezes o fazer, a concepção, que aqui vc nomeou como “jogo” é mais legal até do que o resultado.
    Este jogo na verdade nos faz (a mim faz) entrar num transe que é difícil explicar, mas que nos trás um sentimento tão bacana que pode até ser viciante.
    Escrevi algo sobre isto, sobre o transe e sobre algo que eu chamei de “endorfina fotográfica”.
    São sentimentos que apenas os envolvidos desfrutam, não podem ser compartilhados, mas a gente pode falar sobre eles, como vc vem fazendo há algum tempo já.
    Eu ia escrever mais, mas depois de ler a Rita não precisa.
    Abraços, Ivan.
    Beijos, Rita.

    peridapituba

    3 de janeiro de 2012 at 1:29 pm

  5. Reli.

    peridapituba

    3 de janeiro de 2012 at 2:07 pm

    • Pois é. E é nesse transe que estão as respostas, por isso gosto tanto do que falava o Amilcar de Castro e que serve de abertura para o site sobre ele:

      “Toda experiência em arte é um experimentar-se, é uma experiência de si mesmo, é uma pesquisa em você mesmo. Você não pode fazer experiências com os outros. Este silêncio do olhar para dentro à procura da origem das coisas é o grande problema da arte. Procurando a origem você fica original e não querendo fazer uma coisa diferente.”

      Ivan de Almeida

      3 de janeiro de 2012 at 2:19 pm

  6. Ivan,

    Muito bom artigo, adorei. Concordo com você a respeito da relação que estabelecemos com o outro, com o externo, ser muitas vezes carregada de mentiras e dissimulações a respeito do que de fato nos interessa: nosso prazer, nosso equilíbrio interior. Em verdade, esse conceito se aproxima muito do fundamento básico da Gestalt, que diz, que sobre todas as coisas, o homem busca sempre em primeiro lugar o equilíbrio, tão necessário a sua sobrevivência, física e mental. De fato, penso que devemos mesmo fazer fotografia para nós em primeiro lugar. Claro, que teremos sempre o “outro” como parâmetro, é cultural, tão cultural, que se tornou natural.
    Abraços e Parabéns por mais um excelente artigo,
    Roberto

    Roberto

    3 de janeiro de 2012 at 6:08 pm

    • Muito obrigado, Roberto.

      Por mais que esse outro-parâmetro possa ser problematizado, quando ele é o exclusivo referencial da produção não apenas a autoria desapare como também desaparece o autor, pois a motivação já não é a criação, é outra.

      Grande abraço,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      3 de janeiro de 2012 at 6:53 pm


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