Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

Transe

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Presença e Fotografia

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Por que fotografo? Talvez a resposta mais correta para essa questão seja: “fotografo porque desenhava na infância”. Por muitos aspectos, vejo a fotografia como uma continuidade desse desenhar, desse jogo de olhar, jogo de compreender o olhar, de instrumentalizá-lo. Sinto prazer nisso. Isso deveria bastar, e basta-me.

Por vezes, acabadas as obrigações do dia ou nem isso, fico defronte do computador convertendo fotos do RAW original; olhando, aperfeiçoando, em um jogo amoroso com a forma, mas também em um brinquedo, um brinquedo que me lembra as tardes calmas no apartamento do meu avô onde morei quando criança bem pequena, quando ficava brincando sozinho no quarto claro do apartamento em Copacabana, eventualmente desenhando.

Há dois momentos na fotografia: um momento de fotografar e outro de desenvolver a foto – como bem chamam os americanos e com muita sabedoria, pois o termo desde sempre implícita em uma natureza desenvolvível da fotografia, em oposição à crença do click mágico. Talvez a solidão e introspecção do desenho eu sinta mais no tratamento do que no click, o tratamento é mais um namoro com a forma, pois ela se oferece em repouso para nosso olhar analítico.

Já a tomada da foto, essa é uma experiência de outra ordem. Sessões relativamente longas de fotografia produzem em mim uma leve alteração do estado de consciência. É legítimo dizer haver um estado de consciência alterada quando fotografamos por algum tempo, quando não são uma ou duas as fotos feitas em um ou dois minutos, mas são cem durante uma hora ou pouco mais ou menos. Entro em um transe leve, um transe delicioso e visual no qual nossa dinâmica perceptual vai  aos poucos se amalgamado com o comprimento focal usado, ou, dizendo melhor, vai convergindo para ele, vai se ajustando a ele, vamos gradativamente nos adaptando e nosso pensamento visual torna-se um pensamento modelado pela sua forma característica de traduzir o espaço.

Normalmente, experimento um período inicial frio no qual as decisões de enquadramento são planejadas ou típicas, um período de aquecimento onde esses enquadramentos ainda típicos ganham fluência, um período quente no qual novos enquadramentos são sugeridos pelo próprio processo e depois um período de cansaço no qual as idéias começam a se repetir.

Há muitas coisas a buscar na fotografia, prática simples e ao mesmo tempo incomensuravelmente complexa. Esse transe, essa presentificação que experimentamos nas sessões longas nas quais somos conduzidos pelas imagens, isso seria valioso mesmo sem resultado algum. Parece haver aí uma porta secreta para mirar o mundo, uma porta tal só acessível pela lente e pelo ato de apertar o botão definindo a tomada. O ato de apertar o botão torna o olhar agudo, torna a decisão de apertá-lo uma questão crucial  e nela devemos estar completamente absortos.

E a fotografia-no-mundo para mim é o veículo, é o ticket para esse transe do olhar.

As fotos que ilustram este artigo foram feitas ontem, em uma sessão dessas. Não oferecem nada de excepcional ou de novo, somente são o atestado de minha presença.

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Anexo:

Como resultado dos comentários abaixo, do Guilherme e do Clicio, senti necessidade de enfatizar um aspecto do texto. Transcrevo abaixo um verbete da Wikipédia sobre Estado de Fluxo, conceito proposto pelo psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi

Fluxo (do inglês: flow) é um estado mental de operação em que a pessoa está totalmente imersa no que está fazendo, caracterizado por um sentimento de total envolvimento e sucesso no processo da atividade.

  1. Objetivos claros (expectativas e regras são discerníveis).
  2. Concentração e foco (um alto grau de concentração em um limitado campo de atenção).
  3. Perda do sentimento de auto-consciência.
  4. Sensação de tempo distorcida.
  5. Feedback direto e imediato (acertos e falhas no decurso da atividade são aparentes, podendo ser corrigidos se preciso).
  6. Equilíbrio entre o nível de habilidade e de desafio (a atividade nunca é demasiadamento simples ou complicada).
  7. A sensação de controle pessoal sobre a situação ou a atividade.
  8. A atividade é em si recompensadora, não exigindo esforço algum.
  9. Quando se encontram em estado de fluxo, as pessoas praticamente “se tornam parte da atividade” que estão praticando e a consciência é focada totalmente na atividade em si.

Written by Ivan de Almeida

20 de setembro de 2009 às 10:06 pm

6 Respostas

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  1. Achei muito interessante a descrição da sua experimentação do ato fotográfico. A divisão entre período frio, quente e cansaço. Acho também, que não só o ato fotográfico passa por essas etapas como a própria trajetória do fotógrafo também esta sujeita a essas sensações. Numa escala de desenvolvimento do fotógrafo, inicialmente é uma fotografia fria e técnica, esquentando posteriormente onde a fotografia flui acima da técnica e o período de cansaço, onde entra a questão: o que e para que fotografar? Respondendo essas perguntas, o ciclo recomeça, onde essa etapa de “frieza” será no novo contato do fotógrafo com o seu mote.

    Parabéns pelo post!

    Abraços

    Guilherme Becker

    22 de setembro de 2009 at 12:03 am

  2. Caro Ivan,

    Como bem disse o Guilherme, interessante a divisão em “frio,quente,frio” da sessão fotográfica. Como meu interesse fotográfico sempre envolveu o retrato, psicologicamente é da mesma forma que divido a relação fotógrafo/fotografado; traço um gráfico mental, onde a base (o pé) da curva é longa (período de aquecimento), sobe aceleradamente (o que chamo período quente ou “de pico”) e é aí que as boas fotos ocorrem, e finalmente cai vertiginosamente (o cansaço, que na verdade é tédio e desinteresse por ambas as partes, já que o essencial já foi capturado).
    É uma analogia útil, e por experiência aprendi que quando a curva começa a cair, não adianta mais insistir.
    Obrigado pela reflexão!
    Clicio

    clicio

    22 de setembro de 2009 at 2:15 pm

    • Ontem estive para responder ao Guilherme, não encontre a linha certa da resposta, agora esta sua motiva-me novamente, então peço ao Guilherme que a considere como resposta ao seu comentário também.

      Demos, nós três, por certo que existe essa curva de desempenho. O Guilherme acrescenta haver uma semelhante, de maior amplitude, referente a ciclos de interesse na fotografia, que é também coisa bem perceptível.

      O que eu gostaria de dar relevo, no caso das sessões fotográficas, é o estado de consciência alterada que essas me provocam, que para mim tem interesse por si só. Esse estado pode ser mais ou menos classificado como “Estado de Fluxo”, como descrito no link abaixo (Wikipédia).

      http://pt.wikipedia.org/wiki/Fluxo_(psicologia)

      A experiência dos Estados de Fluxo é bastante interessante, e particularmente gosto muito deles, sendo para mim maravilhoso aquele associado à fotografia.

      Ivan de Almeida

      22 de setembro de 2009 at 2:29 pm

  3. […] Transe « Fotografia em Palavras fotografiaempalavras.wordpress.com/2009/09/20/transe – view page – cached Por que fotografo? Talvez a resposta mais correta para essa questão seja: “fotografo porque desenhava na infância”. Por muitos aspectos, vejo a fotografia como uma continuidade desse desenhar, desse jogo de olhar, jogo de compreender o olhar, de instrumentalizá-lo. Sinto prazer nisso. Isso deveria bastar, e basta-me. — From the page […]

  4. Você conseguiu transmitir com clareza e paixão aquilo que se passa em nossas cabeças e coração quando estamos fotografando. Sábado saí para um ‘fotopasseio’ e foi exatamente assim que a coisa se operou. Durante algum período fiquei com a sensação de que estava interlaçada, de alguma forma, ao local fotografado, e foram nestas ocasiões que saíram as melhores fotos, sem dúvida. Acho que com base no que eu li aqui, na Wikipédia, e conversando com alguns amigos atuantes na área, que é, de fato, um estado de fluxo. Recompensador, na absoluta maioria das vezes, no meu caso.

    Suas observações são bastante pertinentes! Obrigada por compartilhá-las conosco!

    liaguedes

    22 de setembro de 2009 at 3:05 pm

    • Sou eu quem lhe agradece o comentário, Lia.

      Ivan de Almeida

      22 de setembro de 2009 at 3:10 pm


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