Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

Narrativa Fotográfica e Intersubjetividade

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Uma conversa transcrita em partes – narrativa fotográfica, poesia, etc.

Mensagem I

Narrativa.

Esta foi a primeira mensagem em resposta a um interessantíssimo questionamento sobre qual o significado que nas minhas postagens tinha a palavra Narrativa, quando conjugada na expressão Narrativa Fotográfica, em conversa ocorrida no fórum BrFoto.

O questionamento ocorreu dentro de um diálogo com o José Luis Silva, um colega de fórum, duplamente colega por fotografar e por pensar as questões da fotografia e outras tantas.
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Narrativa é uma conjugação de signos concatenada para transmitir uma mensagem qualquer, ou várias mensagens entrecruzadas.

Da narrativa, podemos observar os signos e a forma de concatená-los.

Quando falamos de literatura, estamos dando muito mais relevo à forma de concatenar do que aos signos, e prestamos muita atenção em como a concatenação ressignifica os signos (pois as palavras não têm, como geralmente se acredita, significados fixos, dicionarescos, mas sim contingenciados). Paradoxalmente, o signo não é cabal no que significa, apesar da palavra “signo” indicar isso.

Quando falamos de fotografia, normalmente prestamos mais atenção aos signos do que à concatenação.

No entanto, nos dois casos a narrativa possui os dois aspectos, mas na literatura conseguimos muito mais facilmente distinguir dois textos que tenham palavras parecidas pela forma de concatenação, enquanto na fotografia estamos ainda muito presos a responder “isto aqui é uma fotografia do quê?”.

Porém, se retirarmos esse obstáculo que é a representação -ou seja, a capacidade da câmera desenhar bem segundo as regras da perspectiva cônica- que nos hipnotiza, podemos olhar que cada desenho feito por ela na fotografia ocupa um lugar, possui uma iluminação, existe em um espaço igualmente narrado, enfim, está relacionado com outros tantos constituintes da fotografia, sendo esse relacionamento a concatenação relativa à fotografia.

Dado um determinado objeto, que não existe por decisão do fotógrafo, este objeto é enquadrado, é escolhida uma distância focal, há uma exposição, etc. Através dessas escolhas, o objeto não é tão somente transcrito, mas narrado, ou seja, é plasmado em um ambiente em que passa a viver na fotografia, e ao qual é concatenado, e cujo limite é perímetro do retângulo fotográfico, este desde sempre parte integrante da concatenação. E a mensagem emerge desse conjunto concatenado, não do objeto singular, mesmo quando por um artifício estouramos o fundo branco para só haver o objeto, pois aí, então, esse recorte absoluto é  condição ambiental.

Quando observamos uma foto ela nos diz muito mais do que o rol dos signos nela presentes. Mesmo sobre os signos, ela pode nos transmitir idéias de novo, de velho, de decadente, de riqueza, de afeto, através de conjugações fotograficas -luz enquadramento, distancia focal, tamanhos relativos no retângulo fotográfico, etc.

Usando um exemplo do Roman Jakobson, quando mudamos uma frase da voz ativa para a passiva, o significado muda também, embora aparentemente os signos não tenham mudado. Assim, é diferente fazer uma fotografia que narre “O homem olha a casa” e uma fotografia que narre “A casa é olhada pelo homem”. São mensagens diferentes, e na fotografia, mesmo presentes os mesmos signos, eles devem ser concatenados de formas distintas. A concatenação é um dos aspectos mais visíveis da narrativa.

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O Jose Luis comentou minha mensagem acima, apresentando alguns comentários, parte deles abaixo em itálico, gerando essa respsta:

Mensagem II

A Interubjetividade como alicerce das mensagens poéticas.

Interessantes as questões. Mas penso que nasceram de minha explicação deficiente, ou melhor, de minha despreocupação em dar conta da palavra “mensagem”, que da forma respondida parece ter uma determinação fixada, enquanto para mim não é assim, não é assim que a uso. Mas a palavra presta-se a isso, e é natural ser lida assim.

Vou pegar dois ganchos de sua resposta:

“Que as palavras não têm significados fixos me parece bastante evidente – a poesia revela isso como ninguém. Não há vínculo de necessidade algum entre o cachimbo e a palavra “cachimbo”, assim como o contexto pode conferir a uma palavra um significado bastante distinto daquele que se encontra num dicionário. Tampouco é inequívoco o signo.”


e

Sei que sua fala diz mais respeito ao efetiva e objetivamente narrado, que às intenções (subjetivas [essa palavra, reconheço, causa-me ojeriza]) do narrador,



No primeiro trecho temos um gancho interessante. A Poesia é exatamente uma fala, uma narrativa onde a mensagem não pode ser decomposta nos constituintes. Porque a Poesia não coloca a mensagem nos constituintes, mas na capacidade de reverberar no ouvinte ou no leitor certa impressão que seria vaga, não fosse definida.

Seria vaga porque não positivada dicionarescamente. Mas é definida porque, para além da intenção do autor, posto a Poesia e qualquer outra obra ser sempre uma deriva e não uma navegação rigidamente determinada -embora uma deriva manejada e aproveitada- decanta-se de cada poema um paladar característico. Este paladar, se me permite certa liberdade descritiva, é uma nuvem de ecos.

Ecos do quê? Ecos de reminiscências do observador.

A Poesia é lida/ouvida não com os olhos ou com o ouvido somente, mas com a memória, e seu encanto é não reverberar nas memórias duras e cristalizadas dos signos de significado definido -tanto quanto possam sê-lo-, mas deslizar para regiões da memória onde as impressões não estão totalmente vertidas em palavras, em descrições sociais. Essa região da memória é ao mesmo tempo vaga e determinada. Essa região é chamada normalmente de subjetividade, e de certa forma é, por não ser objetiva, entendendo aqui a palavra objetiva não como correspondente ao Real, mas como um significado-atrator muito fortemente compartilhado socialmente, ou pregnante. Objetivo é o significado que partilhamos sem questionar. “Papai, me dá um sorvete?” E eu sei o que é o sorvete, e, no campo de minha comunicação, sorvete é tratado como significado objetivo.

Mas na Poesia, através da ressignificação que é seu mister, dissolvem-se os significados objetivos, dissolve-se a objetividade aparente -do senso comum- das palavras. Mas ainda assim porta uma mensagem.

Por que? Porque a Poesia, como qualquer outra forma de arte, existe na cultura. Porque a Poesia, como qualquer outra forma de arte, é feita por um homem para outro, e mesmo quando feita para si mesmo, é outro o mesmo que contempla, em relação ao que criou antes.

Então, ressignificando as palavras, a poesia vai reverberar naquelas impressões na memória que não receberam codificação dura. Aquelas impressões que são vagas, colagens de cheiros, de temperaturas, de luzes. As mesmas impressões provocadas pelas Madeleines com as quais o Proust começa sua narrativa.

As madeleines fizeram reverberar no narrador as lembranças de sua infância em Combrai, e é dessas impressões, das luzes projetadas pela manhã na parede do quarto de hotel em Balbec, das ínfimas pequenas coisas que não são ínfimas, mas que constituem nossa experiência da presença -a qual, contudo não sabemos nomear nem indicar normalmente.

Essa experiência é memória, mas que não é descrição, e é nessa experiência que se diz habitar o subjetivo.

Contudo, toda obra artística é feita por um homem para outro homem, então, toda obra artística é um comunicado. E assim, o comunicado não pode ser subjetivo.

Para algo ser comunicado é preciso haver no receptor similaridade de memórias. Sem essa similaridade a obra torna-se opaca. O poeta, mesmo sem declarar isso conscientemente, conta haver no leitor/ouvinte vivências que podem reverberar diante de sua poesia. E não lhe interessa fazer reverberar os significados duros, mas sim trazer à lembrança o gosto das madeleines, aquilo que está na memória mas não tem nome, que está fora do território do nome, que está em uma franja entre o verbal e o não-verbal, que é memória auditiva, táctil, do paladar, olfativa, afetiva, emocional.

Mas se tais memórias fossem puramente subjetivas, isto é, exclusivas do sujeito, seria frustrada a tentativa do poeta. A Poesia só funciona por haver entre os indivíduos similaridade nessas memórias inomeadas. Quando o poeta as põe para reverberar, ele não está fazendo algo impossível, que seria comunicar a outro memórias únicas e só suas -então legitimamente subjetivas-, mas sim fazendo reverberar memórias dessa franja que nasce das vivências humanas em um mundo humano. E que, até certo grau, são produzidas similarmente nos indivíduos.

Sentir frio. Sentir frio e depois aquecer-se junto ao fogo. Sentir fome. Sentir fome e depois saciá-la com alimento. Molhar-se em uma chuva fria. Sentir o sol abrasador na pele. Sentir o sol macio de uma tarde. Impressões.

Não podem ser completamente chamadas à lembrança pela via direta, pela palavra do dicionário, mas podem ser chamadas à lembrança por climas verbais, por transportes produzidos pela oitiva ou pela leitura de um texto poético.

Medo. Eu sei o que é, já senti. Mas ao ler a palavra medo não volto a senti-lo. Contudo, posso ser levado a senti-lo pela obra artística. A obra artística não me dirá “Sinta medo”. Mas produzirá em mim uma revivescência desse sentir. Poderia, já aqui dizer que se assim for, abusando dos trocadilhos, “o medo é a mensagem”.

Deixando de lado a unicidade da existência, a confusão entre Ser e Presença, pois desde sempre estamos falando de algo determinado, e se partíssemos daí nada poderia ser sequer examinado -e aqui a finalidade é examinar-, podemos redefinir essa coisa chamada de subjetividade dando a ela outro nome, o de intersubjetividade, como sugere o Gaston Bachelard. Sendo intersubjetividade esse estoque de impressões que não são positivadas, mas que guardam relação de similaridade entre os homens de uma cultura (e todos somos dentro da Cultura) e mesmo a podemos supor produzida pelo mero intercurso entre o animal homem e ambiente (frio, calor, peso, fome, etc).

A dinâmica de fazer reverberar essas memórias, essas impressões, constitui o Modo Poético, aqui entendido como um modo que vai além da Poesia e está em todo produto artístico.

Mensagem, dentro do que quis dizer com esta palavra na resposta anterior, é também esse reverberar intersubjetivo.

E, assim como na Poesia, a Fotografia possui igual poder de fazer reverberar.

Um amigo lá na serra disse-me há pouco tempo que o grande truque é a estética dissimular-se a tal ponto de não parecer haver estética. A estética fotográfica é ferramenta para esse jogo, para a indicação da mensagem ao observador, assim como a estética da escrita no seu território. Narrar é conjugar isso.

13 Respostas

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  1. Ivan,

    Belas considerações, que tratam rapidamente de signos, significados, objetividade e subjetividade, sem que sejam enfadonhas.
    Sim, concordo que a similaridade de memórias é necessária para que as impressões sejam reconhecidas, e que de fato subjetividade “pura” seria impossível de ser compartilhada, em imagens ou poesia, com o observador/leitor. Curto-circuito. Conexão interrompida.”Houston, we’ve got a problem…”

    clic!o

    8 de agosto de 2009 at 2:24 pm

    • Clício;
      Nas conversas na rede luto incessantemente contra este termo “subjetividade”, porque acho ele ser um biombo impedindo a vista das questões de comunicação da fotografia. O binômio objetividade-subjetividade é estéril, enquanto procurarmos adquiri uma leitura da intersubjetividade parece-me muito proveitoso para entendermos principalmente a fotografia, visto que as luzes, as sombras, as cores, os climas não são coisas de codificação direta, mas vale a pena entender a corda em nós que elas tocam.
      Muito obrigado pelo comentário e pelas conversas.
      Ivan

      Ivan de Almeida

      8 de agosto de 2009 at 2:38 pm

  2. estes dias tenho sido acometido de sintomas que acusam
    duvidas quanto ao lugar do pedagio que cobra o transito
    entre os contratos que geram o cotidiano…ou seja, em que momento se passa o bastão da objetividade para a sub…pois ligado ao discurso das formas,que sou, me parece
    que a intimidade com este momento nos fecunda…

    gal oppido

    8 de agosto de 2009 at 4:09 pm

    • Obrigado pelo comentário, que é mais um acréscimo que um comentário, pois depõe algo muito bacana: você fala de uma fenomenologia das próprias impressões. Essa fenomenologia das nossas impressões é que nos permite conhecer como as coisas reverberam em nós, como até as fotografias reverberam em nós, nos permitindo saber sobre a nuvem de reminiscências e percepções constituintes da intersubjetividade.
      Abraços,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      8 de agosto de 2009 at 4:23 pm

  3. Caro Ivan
    me desculpe por só conhecer seu blog hoje, graças ao Clicio que me enviou o site. Que beleza contar com alguém como você. Passarei a ler de hoje em diante.
    Obrigada.
    Sucesso
    Simonetta Persichetti

    tramafotografica

    9 de agosto de 2009 at 2:05 am

    • Simonetta;

      Fico muito honrado com sua visita e comentário, pois acompanho sua atuação e sei sua importância para o campo fotografia. Sabê-la leitora aumenta minha responsabilidade e fui ver se não havia escrito alguma grande besteira -rs.

      O blog, agora percebo, termina tendo um eixo, uma recorrência, que é uma maneira de pensar detalhando-se através de cada tema. É dessas coisas fantásticas da rede: conversamos o tempo todo com muita gente, e isso nos faz pensar.

      Ivan de Almeida

      9 de agosto de 2009 at 12:26 pm

  4. Ivan, desculpe usar este espaço, mas queria te agradecer o comentário. Fiquei feliz por que tinha justamente passado por aqui alguns dias atrás e “roubado” teus textos para usar com meus alunos de fotojornalismo aqui em Porto Alegre. Um abç, Flávio

    Flávio Dutra

    10 de agosto de 2009 at 12:45 am

    • Flávio;
      Por vezes eu tento seguir os links que são origem de visitas ao blog, e assim cheguei ao seu -e gostei muito. E li aquele artigo no qual você fala algo que também vivi, e vivi conscientemente há uns sete ou dez anos: aceitar minha propria maneira de fazer as coisas e entendê-la como uma plataforma de possibilidades, aliás, as únicas que me são dadas. Interessantemente, essa questão esteve à baila recentemente em uma conversa com um amigo que passava por transe semelhante.
      Obrigado pela visita e comentário, espero que seus alunos não reclamem -risos.

      Ivan de Almeida

      10 de agosto de 2009 at 1:08 am

  5. Olá Ivan!

    Só agora pude parar e ler seu texto com a devida calma e tempo para responder.
    Confesso que preciso reler algumas vezes suas mensagens (na Fotoclic) para, algumas vezes, captar com clareza o sentido de seus comentários.
    Mas é necessário dizer que gosto muito deste estímulo à reflexão e ao pensar mais elaborado!
    Estou aguardando novos textos.

    Grande abraço,
    Ari

    Ari Baiense

    28 de agosto de 2009 at 12:43 pm

    • Obrigado, Ari. O fluxo das postagens é bem variável, pois é preciso um assunto me interessar e não somente isso, mas de me ocorrer uma maneira de falar do assunto mais ou menos interessante.

      Grande abraço
      Ivan

      Ivan de Almeida

      28 de agosto de 2009 at 1:22 pm

  6. Fantástico artigo, Ivan, já está favoritado por aqui, e me abriu bastante a cabeça.

    Pensando naquela sua série dos “onibus”, creio que aqui haja um embasamento teorico bem forte praquelas imagens, existem muitas questões envolvidas.

    Creio que seu trabalho caminha nesse sentido (buscar um mergulho de forma a não transmitir o que seja simplesmente “aparente”), mas conheço pouco, então não digo mais. De qualquer forma, admiro isso, mas desanimo um pouco, pensando que talvez os recursos possíveis esteticamente com a fotografia
    ( que são infinitamente menores a linguagem escrita, convenhamos) ja possam estar banalizados, instituidos em outros contextos mais “superficiais”, exemplo: aquelas fotos de grandes avenidas das metropoles com exposição mais prolongada, onde a torrente de carros se transforma em um feixe de luz. Voce acha que constitui uma questão?

    De qualquer forma, ainda mais na época digital de agora, acredito que são poucos os lugares onde a foto em si, apenas ela, una, seja objeto de observação e constituinte de significado, carregado de valores e impressões, neste blog creio que ainda possamos ter uma leitura assim. no mais, acho que a tendência a “estruturação”, pela própria quantidade de informação que temos no mundo atual se dá, distante de uma “intersubjetividade” que diz.

    um abraço,
    Pedro

    Pedro Cardoso Freitas

    12 de maio de 2010 at 6:42 pm

    • Pedro;

      Creio que se pode notar nesses vários artigos um pensamento que vai se enrondilhando sobre si mesmo, não abrindo novas frentes mas aprofundando certas idéias. Sim, as fotos e os textos são uma mesma coisa, um mesmo pensamento.

      Muito obrigado pelos estimulantes comentários,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      13 de maio de 2010 at 1:35 pm

  7. […] ‘isto aqui é uma fotografia do quê?’” […]


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