Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

O debate estético na fotografia – um debate de valores

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O debate estético na fotografia – um debate de valores

“Uma coisa pode referir-se a nosso estado sensível: esta é a sua índole física. Ela pode, também, referir-se ao nosso entendimento, possibilitando-nos conhecimento: esta é a sua índole lógica. Ela pode, ainda, referir-se a nossa vontade [como objeto de escolha para um ser racional]: esta é sua índole racional. Ou, finalmente, ela pode referir-se ao todo de nossas diversas faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada dentre elas: esta é a sua índole estética [Schiller]

OS LOUCOS CAMINHOS PELOS QUAIS NOS CHEGAM AS IDÉIAS

As coisas nos chegam da maneira mais indireta. Quando nos chegam, percebemos que elas estavam fazendo falta e que dão conta de algo percebido mas insuficientemente enunciado, algo à espera de uma enunciação capaz de fazer avançar nossa compreensão sobre o assunto. O texto acima foi uma dessas coisas, e o encontrei através do mais improvável dos caminhos e ao encontrá-lo percebi que precisava dele, que ele me permitiria falar sobre algo que na fotografia cria tanta confusão, tanta incompreensão: as diferenças de recepção dos tipos de fotografias.

Por acaso, ontem, meu filho veio me dizer ter encontrado no You Tube a música Tubaína concorrente a um festival da Globo em 2000, que, em minha opinião e na dele –e estou certo na de muitos outros- era a música mais interessante e no entanto perdeu para uma música tola de viés pop. Meu filho tinha apenas 10 anos em 2000, mas lembrava e veio reencontrar a música em pesquisa realizada no YouTube. Mostrou-me. Lembrei-me da música e perguntei de quem era. Informou-me: “de um tal de Fernando Chuí”. Bem digitei o nome dele no Google e cheguei ao seu site e depois ao seu blog, e de repente percebi ter encontrado um intelectual perspicaz e com uma visão aguda das coisas. Comecei a ver o que ele postava, e, abrindo um vídeo, ouvi esta frase citada. Seguindo a pesquisa fui atrás dessas idéias do Schiller.

A idéia é muito interessante, porque sugere que a fruição estética, na medida em que é determinada por um todo de diversas faculdades do indivíduo, termina expressando algo como sua ideologia, entendendo essa como um somatório dos seus valores, de suas memórias de experiências práticas e afetivas, de suas experiências estéticas anteriores e de sua inserção social em todos os matizes. Dito de outra forma, percebemos como belo aquilo que nossa ideologia (em sentido ampliado da palavra) nos faz percebermos como belo, aquilo afim com ela.

DETERMINANTES DA ESTÉTICA FOTOGRÁFICA DA ATUALIDADE

Não é absurdo dizermos que, tirando os que fotografam sem contacto com outros fotógrafos, a maioria dos fotógrafos vive sendo submetida a imagens fotográficas de outros autores, e em relação a essas, querendo ou não, expressando ou não, mantém uma crítica: gosta, não gosta, sente-se instigado ou indiferente, enfim, recepciona as imagens dos demais e situa a si mesmo e as suas diante disso.

Desde a comunicação pela rede, isso transborda da opinião individual para um debate público, e nesse debate público os fotógrafos dão visibilidade à sua opinião para uma comunidade de outros fotógrafos com visões variáveis, algumas semelhantes, outras muito distintas. Esse debate parece pegar a todos de surpresa, e acontece freqüentemente um estado atônito quando se percebe alguém ter uma visão da obra oposta à que se tem. Ora, isso ao acontecer é denominado de variação de gostos, e sob essa denominação mantém-se como coisa vaga e imprecisa e fora do campo de um exame que faça disso algo inteligível.

Porém, seguindo a sentença do Schiller, o que acontece nessas variações é o objeto estético ser recebido por ideologias completamente diferentes. E assim, ele coaduna-se com algumas e não com outras. E, como a recepção do objeto estético é ideológica, no sentido amplo da palavra, ao serem verificadas essas diferenças, pode acontecer –e acontece- que a recepção contrária quando enunciada pareça quase ofensiva, uma vez que ela embute uma negação implícita de um sistema de valores.

No campo da fotografia a coisa fica ainda mais confusa porque enquanto nas artes em geral o objeto artístico é sua própria finalidade, e isso confere ao criador alguma liberdade e o descondiciona, até certo ponto, de outros valores sociais atravessados, na fotografia o objeto precisa cumprir um papel determinado, um papel no qual a ideologia majoritária ou endêmica da sociedade é formatadora. O fotógrafo profissional educa-se para ser um interprete dessa ideologia, e essa educação não pode ser apenas externa, ela penetra nos valores e passa a conotar o sistema de valores do fotógrafo, ou, seguindo Schiller, a sua índole estética.

Ora, se poderia argumentar não ser coesa e unitária a ideologia de uma sociedade, e isso é certo, porém ela tem suficiente coesão para a sociedade funcionar. Quando uma revista publica a fotografia de uma mulher em sua capa, há uma boa dose de certeza dessa foto repercutir esteticamente sobre uma faixa ampla do público. Quando um anúncio mostra um novo automóvel, ele é apresentado de forma a ser recebido esteticamente pelo público e a produção de objetos estéticos é uma técnica no sentido de haver educação para isso nas escolas de design, de arquitetura, de artes, etc. A estética social não é pura subjetividade, fosse não funcionaria tão bem no sistema de produção como funciona. O fotógrafo precisa ser capaz de interpretar essa estética social nos diversos segmentos (ou em suas diversas índoles), que, embora diversos, comungam um sistema básico de valores, do contrário sua fotografia será inútil ao sistema e não comercializável.

Fotógrafos de casamentos precisam narrar casamentos como eles são idealizados socialmente, fotógrafos publicitários precisam narrar objetos de perfeição idealizada, fotógrafos de moda precisam narrar a idealização da elegância e do comportamento nela embutido.

Assim, em grande parte, a fotografia profissional requer um treinamento que é obtido mais ou menos inconscientemente no sentido do fotógrafo introjetar uma faixa ou espectro dessa ideologia, sistema de valores ou índole da sociedade, e ser capaz de conjugá-la na produção. Irremediavelmente a fotografia comercial precisa da índole estética endêmica no mundo.

É claro que o fotógrafo profissional não está preso absolutamente a essa estética. Há casos notáveis como o Helmut Newton, como o Richard Avedon, etc, e em geral no topo da cadeia alimentar os fotógrafos possuem uma estética própria, e essa estética os distingue, os notabiliza. Mas tomando o conjunto por sua média, pela prática profissional efetiva nota-se que a estética da fotografia comercial é tão endêmica quanto possível, e mais, que isso, isso chega a ser seu requisito de eficiência.

A fotografia amadora também é sujeita ao mesmo fenômeno, mas de forma indireta. Sua sujeição a esse modelo provém do desejo da maioria dos amadores de praticar uma fotografia semelhante àquela praticada pelos profissionais, e provém também do fato de ser tal índole estética aquela endêmica na sociedade, fazendo parte de um treinamento ambiental não específico obtido meramente pelo conviver social.

Deve ser considerado que uma grande parte dos amadores está em busca de aprender sobre fotografia, e o modelo para tal aprendizado é a fotografia que vêem em revistas, sites, outdoors. Este modelo lhes dá um parâmetro de proficiência. Proficiência seria conseguir fazer algo semelhante ao que viram, pois lhes falta em geral uma formação visual mais profunda ou em História da Arte que permita lidar com questões estéticas desde uma base diversa. O progresso mensurável para a maioria dos amadores é a percepção de convergência de sua fotografia com a fotografia comercial. Isso aparece nos meios fotográficos no fato de dos iniciantes chamarem os mais experientes de “profissionais”, sem atentarem que uma parte deles não o é. Assim, há uma derivação da lógica da fotografia comercial para toda a fotografia, exceto aquela ocasional dos que viajam, dos que fotografam a família ocasionalmente, essa sequer considerada atividade fotográfica séria.

Outro aspecto dessa transmissão dos valores da publicidade para a criação fotográfica é a tendência de muitos fotógrafos à foto-idéia (neste blog, artigo Qual é a Idéia?, sobre isso). A publicidade vive de idéias. Foto-idéia é aquela na qual o fotógrafo realiza, utilizando uma câmera fotográfica, algo que poderia ser realizado por outro meio qualquer, visto constituir muito mais uma articulação simbólica do que uma abordagem fotográfica de fato a partir das questões específicas da fotografia. Recentemente em uma conversa em um grupo de discussão falou-se de uma fotógrafa, fui olhar as fotos e era isso, puramente isso: idéias representadas. Petrina Hicks, seu nome. Há em suas fotos evidente e superlativa capacidade técnica ao fazer a luz, etc. Há perfeição técnica e representação clara. Há uma estética convencionalíssima à serviço de uma idéia. Mas a narrativa da foto é reduzida, é apenas uma idéia que uma vez vista não sustenta nova visão. Como um trocadilho. Trocadilhos são assim, deslocamentos semânticos não poéticos em sua maioria. Ouvimos um trocadilho, achamos graça e pronto, não há espessura poética, não há mergulho. Nós os compreendemos usando meramente a lógica verbal, eles não nos exigem por inteiro. Uma foto tem uma mulher comendo uma ave… Tá. Já vi… Tenho de ver de novo? Ora, por favor, não. Não tem graça nenhuma além desse inusitado domesticado, desse inusitado que não exige muito de mim para compreender, que não exige que eu penetre na fotografia, que não me alicia, não me prende.

Mas isso é afim com a estética publicitária, que em grande parte consiste nisso, em idéias rápidas e rapidamente interpretadas. A rapidez da interpretação denota a ausência de profundidade, ausência de real poética.

Tudo isso forma um complexo no qual há uma grande pressão –não absoluta- de anulação poética. A tendência ao estilismo, a redução da criação a uma representação de idéia (criações tornam-se cartas-enigmáticas de fácil solução), o requisito de amalgamento com a estética geral como necessário à circulação da mensagem, tudo isso torna a produção fotográfica e a produção cultural em geral um processo de reiteração mais do que de proposição. Não é de se estranhar que se veja nisso o desvanecimento da autoria, porque de fato a autoria implica em certo radicalismo que não cabe nesse modelo.

A CONTRA-ESTÉTICA

Visto isso, haveria um lugar para uma contra-estética fotográfica? E, havendo, qual a natureza possível dessa contra-estética?

Ora, observando o movimento das artes em geral notamos que, ao contrário do que acontecia no passado, a atualidade é ávida de novidades, é ávida de formulações estéticas e tem grande capacidade de absorve-las e amalgamá-las com o endêmico. Diferentemente do acontecido com o Impressionismo, rejeitado em sua época pela academia, a academia atual ouo  Sistema da Arte é ávido por qualquer novidade. A novidade é a repetição. Desse modo, parece fechado o caminho para uma contra-estética, visto qualquer emergência estética ser apropriável. A simultaneidade das manifestações, característica da atualidade, as iguala, as torna todas subconjuntos ou “estilos”, dentro do entendimento de um estilo não ser um movimento artístico ou formal, mas tão somente um maneirismo. Uma estética não rompe com as demais pretendendo substituir todas por uma nova visão de mundo que nela está implicada, apenas iguala-se com as demais tornando-se mais um estilo à disposição. Mais uma novidade repetitiva. Não ocorre mais rompimento, e, não ocorrendo, isso denota todas as estéticas serem equivalentes e todas anti-artísticas, visto não proporem desolocamentos ideológicos apreciáveis ao observador.

A contra-estética pode ser observada em outras áreas criativas e parece ser um sinal dela uma recusa do criador em participar do caldo maior da cultura. Trata-se de uma contracultura, mas diferentemente daquela que recebeu esse nome, a atual não se propõe universalizante, não se propõe uma cultura que substituirá a antiga, que a depassará. Propõe-se deliberadamente como gueto, como não miscível, como não comercializável. O criador não quer, não aceita, não deseja o sucesso midiático, uma vez que esse sucesso midiático automaticamente transformaria em estilo aquilo que produz. O criador volta-se para o mundo que o cerca, para seu entorno imediato ou para questões específicas e produz a partir disso. Um exemplo dessa atitude é, na música, o Elomar, artista de refinadíssima e visceral produção, mas que se mantém fora do circuito comercial e adota uma forma de vida imbricada com os valores de sua produção.

Essa relação fama/absorção tornou-se evidente no final do sonho contracultural sessentista/setentista, quando os porta-vozes dos novos valores contraculturais ficaram milionários. Porta-vozes de valores que incluíam um modelo vida despojado tornaram-se imensamente ricos, e cada nova forma “alternativa” enriquecia  seus criadores, tornando-se assim um produto na prateleira do sistema que originalmente pretendia modificar. A grande tenacidade da atualidade é sua capacidade de cooptação daquilo nascido em contestação a ela.

Este é o fato, este é o paradoxo. Para sair do gueto é preciso domesticar a produção e  fazê-la miscível com a índole estética endêmica, e, então, torná-la um estilo. E para realizar uma contra-estética, é preciso recusar participar desse campo geral. Não é possível ser contracultural e milionário ao mesmo tempo, não é possível ao mesmo tempo o sucesso midiático e a verdadeira negativa implicada na atitude contracultural. Por outro lado, a atitude contracultural não parecerá necessariamente contracultural, pois se o fizer tornar-se-á igulamente um novidadismo cooptável. Pode parecer até tradicional, pode parecer resgate regional (caso do Elomar), mas não parecerá proposta alternativa universalizante.

Encontrar a dose na qual se mantém suficiente força poética e capacidade de deslocamento na produção, e, ao mesmo tempo, a fazer suficientemente social –pois fotografia é comunicação- é o desafio de nossa época. Cada um lidará com isso e buscará uma dose, e  a distinção da produção de alguém serão os elementos dela inassimiláveis, os elementos não miscíveis. Conforme cada um se coloca nesse jogo, que é um jogo de valores, de ideologia, enfim, um jogo da totalidade das faculdades do indivíduo, assim será sua índole estética; ou fortemente midiática, ou mantendo com essa uma tensão qualquer onde estará a ideologia específica da produção.

O artigo ficou mais longo do que desejava, e foi seguindo rumos não previstos no início… Aliás, já nasceu assim… Fica assim mesmo.

15 Respostas

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  1. Esclareceu bastante Ivan, um tema denso e importande que nos sacode em nossa zona de conforto.

    Nereujr

    25 de junho de 2011 at 8:08 pm

    • Obrigado Nereu.
      O texto surge de um debate, surge de ter encontrado uma frase, e vai se fazendo. Eu mesmo ao escrevê-lo não sabia onde ia dar…

      Abraços

      Ivan de Almeida

      25 de junho de 2011 at 8:34 pm

  2. O que mudou? O discurso é o mesmo e história demonstra através de séculos. Estamos só vivendo em uma velocidade muito acima do que a do passado.

    Fotografa-se para agradar a muitos para custear o gosto de fotografar de forma diferenciada (e não nova, são releituras lapidadas e ou simplificadas).

    O discurso não muda, há fotografias para todos os objetivos, mas não há críticos para todos esses objetivos.

    Abs

    Pepe Mélega

    26 de junho de 2011 at 11:30 am

    • Obrigado pela contribuição, Pepe.

      A mudança de que falo não é na fotografia, mas na ideologia social como um todo, o que inclui a forma como cada coisa é feita na sociedade e como a sociedade pensa a si mesma e o lugar de cada coisa. Grosso modo e simplificando, essa absorção de tudo no modelo corresponde ao Pós-Modernismo, que é caracterizado pela simultaneidade de manifestações. E, sendo algo geral, reflete-se na fotografia também. Observe que vou buscar certos exemplos na música, não na fotografia, exatamente porque é uma coisa comum.

      Abraços
      Ivan

      Ivan de Almeida

      26 de junho de 2011 at 12:42 pm

  3. Ivan,

    Interessante o artigo, e tem alguns vieses muito bem fundamentados.
    Porém falar em contracultura (ou melhor, contraestética) em 2011 é chutar cahorro morto, na minha modesta opinião.
    Estamos falando de Google e de galerias virtuais, música sampleada, de conteúdo gerado por robôs/mecanismos de busca (mix & match).
    Não há, como você bem disse, espaço para “contra” nada; inovou, modificou, criou, contestou, será imediatamente absorvido, digerido, acomodado e regurgitado.
    Seus exemplos fotográficos também não me convencem. Citar H. Newton e Avedon é óbvio demais. É como falar de Bresson ao invés de Irina Ionesco. Nem Avedon nem Newton produziram arte conscientemente, e nunca isso pretenderam (segundo eles mesmos); apenas fizeram de seu trabalho comercial uma vitrine para sua boa fotografia, e suas boas idéias.
    Será que isso é arte?
    Os contemporâneos afirmam que não, não é.

    Abraços,

    Clicio

    clicio

    27 de junho de 2011 at 10:53 am

    • Olá, Clicio;

      Obrigado pelo comentário.

      Essa história de contracultura é assim mesmo como você diz, e como o proprio artigo indica, algo não mais cabível. Mas é essa a questão mesma. É uma época -a atual- na qual não há mais nada que seja contracultura no sentido de uma cultura substitutiva, de uma alternativa. E isso acontece porque toda irrupção que se queira nova é miscigenada, sampleada, referida, citada, derivada e torna-se um estilo, não mais que um estilo. Um estilo entre tantos, todos disponíveis na prateleira, mas nenhum com caráter de visceralidade, nenhum realmente inovador nem com capacidade de deslocamento real do observador. No artigo ao falar disso tento exatamente mostrar como é um jogo do qual não se pode escapar jogando-o, embora esse não escapar possa ser melhor descrito.

      Gostaria de frisar que embora lidando com uma atividade de viés artístico no artigo, ou citando a música ou falando de estética, o artigo em si não pretende atribuir a visceralidade apenas à arte, nem exatamente distinguir entre arte e não arte, no que concordo também ser esforço vão. A índole estética apresenta-se em coisas mais corriqueiras tanto quanto na arte. Escolhemos camisas e sapatos diferentes, porque ao nos vestirmos nós personificamos pessoas diferentes. Posso gostar de um sapato que você não gosta e vice-versa, e isso refletirá nossa índole, nossa ideologia, tanto quanto ao gostar ou não de uma fotografia, mas a escolha do sapato não nos fará debater publicamente espantados, achamos natural escolhermos sapatos diferentes. Os fotógrafos citados não o foram como artistas, mas como produtores de uma estética especial e distinguível dentro da massa geral de fotografias feitas em suas épocas.

      Esta é a questão, talvez, que o artigo aponta de uma forma mas pode haver outras. Temos um contexto que nivela. As pressões de nivelamento são enormes. Como lidar com isso? Uma das respostas é “participar disso e pronto”. Porém, participar disso seria assumir a índole estética endêmica, conjugá-la, etc. É isso?

      Nesse sentido a expressão contracultura pode significar uma pergunta. A pergunta seria: como (mais como do que “o quê) se pode fazer para ter algum grau de independência em relação a essa geléia-geral? No caso, observo produtores que escolhem tê-la, o Elomar, por exemplo, e que escolhem não terem a difusão midiática que poderiam ter em prol de manterem certa ligação de veracidade com suas fontes ideológicas/vivenciais. Não sei se você conhece a obra do Elomar, provavelmente deve conhecer, mas ela é uma narrativa de um modo de viver mais do que apenas músicas. O modo de viver e as músicas são um todo orgânico, de tal sorte que não se pode meramente transplantar as músicas para fora do contexto que as acompanha.

      Veio-me agora uma comparação engraçada… é como jaboticaba. Jaboticaba é uma fruta peculiar porque não pode ser comercializada direito. A única forma de comer jaboticaba é no pé diretamente, colhendo e comendo. Basta colher a jaboticaba e esperar uma ou duas horas que ela perde os perfumes e paladares sutilíssimos e transforma-se em uma fruta sem graça. Ou o pé de limão-doce do meu vizinho lá da serra (que me autorizou colher quando ele não está lá). São dois pés de limão-doce pequenos, esmirradinhos, os frutos irregulares alguns pequeniníssimos. Imprestável como lavoura comercial. No entanto o suco cítrico que faço a partir deles é absurdamente sofisticado, complexo, matizado, perto do qual um suco de laranja comum parece uma bebida industrializada.

      O que quero dizer, Clicio, é que há uma dialética (eita palavra horrível!) entre o geral e o particular. O geral é aquilo capaz de circular na mídia, o particular é a única fonte de diferença possível. No particular a índole estética é maximamente ideológica, tomando essa palavra no sentido de específica, peculiar, etc. No geral, os estilos são apenas pequenas indicações de índoles dentro de uma índole geral aplainadora.

      Tenho um amigo, fotógrafo amador, que é fazendeiro. Peri, o nome que usa na Internet. Desde alguns anos muitas de suas fotos são da vida rural, das pessoas que freqüentam sua fazenda, dos seus afazeres. Talvez sejam as fotos, como grupo, que mais aprecio porque trazem todas um depoimento de dentro, um depoimento na primeira pessoa, direto. São como uma jaboticaba, outro fotógrafo ali produziria imagens estéticas, talvez algumas ótimas fotografias, mas nelas faltariam os aromas e sabores da jaboticaba. Não sei, Clicio, algo me diz ou me sopra aos ouvidos que só as fotografias na primeira pessoa do singular são realmente interessantes, só as fotografias nas quais um particular vivencial emerja delas. Seguindo sua justa crítica á forma com que digo as coisas, ressalto: ‘”para mim…”. Para mim, as fotos que me tocam, que me interessam, são de tal modo na primeira pessoa que dificilmente podem ocupar um lugar no jogo maior -embora possam merecer.

      Nesta fotografia o pai do Peri, de costas, acertando as contas de alguma transação.

      Assim, a joboticaba é um contra-cultivo, no mesmo sentido que falo de uma contra-estética, e a fotografia do Peri é uma contra-estética embora seja compreensível no mundo estético normal. Ambas as coisas são impossíveis de serem tiradas de sua raiz sem perderem aquilo que as torna interessantes. Assim é a obra do Elomar também. Vi uma apresentação dele na sala Sidney Müller no Palácio Capanema, aqui no Rio, no qual um auditório de 200 lugares tinha 20% deles vazios. Este é o radical compromisso dele. Um dos maiores músicos brasileiros, apresenta-se para menos de 200 pessoas e isso é a forma que o permite ser quem é.

      Ora, poderíamos aí falar de várias questões, entre as quais o sustento do produtor cultural. Poderíamos falar de mecenato, de auto-mecenato, de mecenato estatal, de sustento por produção comercial. Seguindo a comparação com os pés de futras, seriam como plantios. O limão-doce do viznho não pode ser replicado em uma plantação extensiva, porque se o for principiará a receber defensivos agrícolas, principiará a ser selecionado para maior produtividade e para não ter frutos esmirrados, o solo terá fertilizantes, e assim de tal maneira que o fruto já não será aquele cheio de matizes e complexisdade. A fotografia do Peri não pode ser feita por outro, nem ele pode de repente produzir para finalidades outras.

      Essas são as escolhas. Temos de escolher o ponto da curva que nos interessa e entender que ele traz certas possibilidades e elimina outras.

      Os fotógrafos citados o foram a bem da compreensão geral do artigo e porque eles trazem em suas fotografias algo de irredutível, algo que ultrapassa o estilo, mormente o Newton. Sou meio preguiçoso para citações, vou um pouco no mais óbvio desde que isso torne compreensível o argumento… Prefiro citar o Bresson, que todo mundo conhece, quando preciso.

      Um grande abraço. Muitos dos artigos deste blog originaram-se de conversas com você, ou concordantes, ou compontos de vista diferentes. Acho a conversa uma coisa sensacional porque nos traz assuntos e pensamentos.

      Ivan de Almeida

      27 de junho de 2011 at 1:45 pm

  4. PS:

    Boa a foto que ilustra o artigo.

    clicio

    27 de junho de 2011 at 10:58 am

    • Obrigado. É uma foto dessas que se intui que dará caldo, mais se intui do que qualquer coisa.

      Ivan de Almeida

      27 de junho de 2011 at 12:18 pm

  5. Acho que o artigo é muito explícito e demonstrativo e nem cabe muitas observações.

    Naturalmente quem está um pouco mais preocupado em questões de estética na fotografia e na busca por um trabalho que realmente faça sentido (mesmo que este sentido seja apenas próprio e de cunho pessoal) vai ler e entender nas palavras do Ivan o objetivo maior do texto.

    Não é nem questão de discordar ou concordar, acho que o artigo caminha mais no sentido de nos fazer pensar e isto é muito bom mesmo.

    Fiquei muito lisonjeado em ser citado e ter uma foto minha incluída aqui, e por isto agradeço Ivan, que, eu não canso de falar, é o maior responsável por eu ter as atitudes fotográficas que tenho.

    Abraços em todos.
    Peri.

    peridapituba

    27 de junho de 2011 at 2:30 pm

    • Vejo um pouco como você, Peri, não é questão de concordar ou discordar, o artigo só agrega uma explicação para a grande diferença de gostos, de recepção de uma fotografia, e para o fato disso por vezes provocar debates acalorados quando não antagônicos, quando comprar um sapato diferente do seu não provocaria.

      E, talvez, aponte algumas atitudes possíveis em relação a isso com as conseqüentes variações de apreciação das fotos.

      Sua fotografia é das que mais me dá prazer ver, e o que acho mais fantástico nela é essa fala de dentro da vida, uma fala que mostra a vida estetizada e não a vida fantasiada. A participação que tive nisso foi apenas a de quem tira a tampa de uma garrafa… Não fui eu quem colocou o que está lá dentro -risos.

      Um grande abraço
      Ivan

      Ivan de Almeida

      27 de junho de 2011 at 2:37 pm

  6. Saudações, a todos… sei que estou chegando um pouco atrasado no “proseado”, mas gostaria de oferecer minha humilde participação.

    Ivan, o seu artigo me chama atenção especificamente pelo ponto de partida que o levou a começar o exercício de pensá-lo: a citação de Schiller. Não penso ser necessário entrar nos méritos de interpretação filosófica sobre esse ponto de partida, mas no que isso te provocou ao ponto de voce “sentir a necessidade” de escrever algo sobre o tema.

    O exercício de por em discurssão essa relação entre o particular e o universal, nesse caso tomamos o exemplo da fotografia (e/ou da música), parece-me além de pertinente, necessário. Estou de acordo que não se trata de pôr em discussão o que é ou não é arte, determinismos hoje um tanto insustentáveis. Mas de pensar e repensar a criatividade do artista que por motivos diversos, inclusive (e talvez, SOBRETUDO) por questões financeiras, se torna refém de um padrão estético que dita o que é comercialiável.

    O resultado disso é uma singularidade de algo que vem antes da estética, que é a própria faculdade do pensar. Trata-se de uma lógica que atinge diretamente uma dimensão epistemológica que nos limita o processo criativo. A criatividade do artista fica diretamente proporcional ao “comercializável”. E como artista precisa comer, o pessoal que interesse de chegar a algum lugar com seu trabalho vai se rendendo a essa lógica.

    Mas até aí não vejo problema nenhum, afinal de contas creio que do ponto de vista da necessidade do trabalho e para a divulgação de um “fazer” profissional, talvez seja interessante haver profissionais que preencham quesitos imediatos para um público geral que só quer comsumir e não está exigindo nehuma originalidade especial. Até porque se formos falar de fotografia de casamento, só pra citar um exemplo, o cliente muitas vezes quer a mesma foto que o casal da amiga da outra amiga tirou não sei aonde.

    Para mim, o problema é quando essa lógica da mesmice, da unitariedade, a lógica de um pensamento comercial unificado, ganha status de verdade única e possível. Isso, do meu ponto de vista, é um massacre contra os potenciais artistas que desejam viver de sua arte e não querem entrar nessa lógica. E é também um atentado contra o conhecimento e contra à própria arte, Não é à toa que existem dezenas de grupos musicais que quando se escuta sua música parece um único e mesmo grupo. Em fotografia, às vezes passo horas vendo o flickr e me surpreende muito ver o quanto minhas fotos se parecem com a de muitos. Sou visitante assíduo de sites de lomografia, inslusive procuro ver fotos dos países escandinavos e nórdicos pois considero que tem um modo de pensar muito particular, e ainda assim encontro muita semelhança estética nesse tipo de produção fotográfica. Também leio sobre fotografia pinhole e vejo muitos trabalhos com frequencia, e ainda assim, a “liberdade” e falta de compromisso estético da pinhole se tornou uma estética única.

    Volto a dizer que não estou tratando de dizer que isso tá mal. De forma alguma. Mas estou tentando pensar a partir de seu artigo, que por sua vez nos remete à citação de Schiller: “[uma coisa pode] referir-se ao todo de nossas diversas faculdades sem ser objeto determinado para nenhuma isolada dentre elas: esta é a sua índole estética“. Daí, olho para a produção fotográfica de maneira geral e a surpresa que tenho não é causada pela motivação a que Schiller disserta. Parece-me, portanto, que o debate que você traz em seu artigo estrapola as fronteiras da estética e se coloca em um ponto anterior, o saber. E se essa proposição estiver correta, então sim devemos nos preocupar, pois estaríamos vivendo uma ditadura invisível que nos educa em uma lógica que não lhe comvém a diferença.

    mais uma vez, parabéns pelo artigo, há dois dias encontrei essas página por acaso, e devo de dizer que foi um excelente acaso.
    inté

    Paulo Airton Maia

    14 de julho de 2011 at 2:29 pm

    • Paulo;

      Uma das coisas que mais me maravilha neste blog é a qualidade de algumas respostas, a qualidade dos comentários.O seu é um exemplo disso, e o que nele você indica, isto é, a uniformização do saber, ou a uniformização do pensar a partir de um ajuste de conduta muito coativo derivado da eficiência dos meios de comunicação e dos requisitos de conduta para que o indivíduo seja proficiente em nosso mundo.

      É essa uniformidade que aparece nas fotografias iguais, nas concepções iguais, nas músicas iguais, nas letras iguais. Agora mesmo saí de carro e fui ouvindo rádio, e uma música que não conhecia enunciava algo de uma relação amorosa em termos os mais padronizados que se pode imaginar. Ora, isso é uma narrativa não da essência da relação, mas de um discurso compartilhado do que é a relação amorosa moderna do qual o autor é um repetidor-confirmador. Uma grande parte das coisas ditas, em letras musicais ou em imagens não passa disso, não passa de “dizer com suas próprias palavras” algo, e não dizer um algo vivido ou específico. A maior parte dos discursos soa como de adesão a modos de vida, valores, pensamentos circundantes, e raramente um depoimento a partir da vida mesma do indivíduo.

      Há um texto do McLuhan no qual ele fala dessa assunção do discurso pronto, e de um momento no qual esse discurso se torna mais valioso que o discurso íntimo ou genuíno, e cita a passagem do King Lear como exemplo: “Para calcular a partilha, pede às filhas que expressem a gratidão e o amor que sentem pelo pai. Goneril e Regan fazem discursos aduladores, em que afirmam que o amam mais que qualquer coisa no mundo. Cordélia, por outro lado, contraria as expectativas do rei e afirma que o ama “como corresponde a uma filha, nada mais, nada menos”. Irritado com essa resposta, Lear deserda-a e expulsa-a do reino, entregue sem dote ao rei da França.” (texto da Wikpédia). O McLuhan identifica aí o momento dessa substituição do depoimento do que é vivido pelo depoimento formal, o sentimento formal, a vivência formal.

      Ora, com os meios de comunicação extremamente pregnantes, esse depoimento formal vai dominando os processos intelectivos. E, em conseqüência, os produtores de obras visuais, musicais, passam a assimilar e propagar esse discurso formal. Fotografias passam a repetir ad nauseum essa esquematização, essa formalização, a tal ponto que quando aparece um discurso genuíno ele é desprezado como Lear desprezou o depoimento de Cordélia. Diante dos eufemismos, das idealizações publicitárias, dos pores-do-sol mais intensos do que qualquer pôr-do-sol, o genuíno parece pálido, sem graça, e quando exposto recebe críticas que denotam decepção. “Isto é tão pouco!”. Seja por exagero na feiúra ou na beleza, o apenas normal parece sempre muito pouco.

      Ora, os produtores são atraídos a essa cilada não apenas porque estão impregnados por essa formalidade, mas também porque desejam o sucesso. Repetir e confirmar é sempre mais direto.

      Então, quando o Schiller fala da índole Estética, temos de entender que além das diferenças das diversas tribos sociais que compartilham o espaço cultural, mas diferenças essas não de fato profundas em valores embora magnificadas em sinais externos, a índole estética precisaria de um sujeito não-universal que a tenha, pois o comum não é uma índole: é comum.

      Um grande abraço, e muito obrigado pelo diálogo.

      Ivan de Almeida

      14 de julho de 2011 at 5:03 pm

  7. Valeu, Ivan… acho que podemos continuar o caminho na dificil tarefa de pensar… gostei muito de sua página… pouco a pouco estarei lendo seus artigos. parabéns

    Paulo Airton Maia

    19 de julho de 2011 at 2:31 am

  8. Pelo menos um ano e meio atrasado, resolvi entrar na discussão mesmo assim, já que me propus a estudar sobre estética e logo de cara me deparei com este ensaio que me fez pensar muito a respeito.

    Se analizar-mos socioculturalmente, principalmente no brasil, onde a fotografia surge da própria fotografia, diferentemente da sociedade européia onde os primeiros fotógrafos vinham de uma educação estética proveniente das artes plásticas arraigadas muito fortemente na cultura e também de revoluções contra regimes totalitários e aristocratas que permitiam uma “fuga” artística, a educação estética é falha no sistema de ensino e mesmo a criatividade e o rompimento com a estética vigente é podado desde a infância, (embora acredite que boa parte do mundo contenha basicamente os mesmos valores no sistema de ensino, me limito a falar do brasil que é o único que conheço).
    Isto posto, seria compreensível a formalização na estética fotográfica, reforçado pelo fato de que necessariamente o fotógrafo precisa de certa adequação ao sistema para sobreviver financeiramente. Porém, se pusermos o comum nos termos da simplicidade notamos que uma fotografia extremamente original advêm de uma estrutura formal tão simples a ponto de unificar os elementos em um todo coeso e o comum torna-se inteiramente forte. Comercializável? Talvez. E o ponto crucial que vocês habilmente puseram em questão é este, encontrar um equilíbrio entre a contra-estética e a estética formalizada, o que, em minha opinião é uma questão de discurso.
    Uma vez numa discussão sobre o mercado da “arte” me foi dito que “o mercado absorve tudo”, e de fato, falar de contra-estética torna-se um contra-senso. Vide o movimento dada encabeçado por Tristan Tzara, que se propunha a ser o primeiro movimento anti-arte. Como movimento anti-arte, era de se esperar que não se mantivesse no circuito da arte, ao qual ia contra. Paradoxalmente, o mercado da arte a partir de então, absorveu a anti-arte como arte, tornando-o parte de si, um ismo, um estilo, anulando a contra corrente. Então como encontrar este equilíbrio? Talvez aperfeiçoando uma estética particular em “primeira pessoa” pondo-a em meio a um discurso de mercado sem perder de vista este fim. Sarah Moon inovou ao trazer sua estética particular para o mercado da fotografia de moda, que foi, é claro, absorvida por esse mercado.
    O que eu quero dizer é que é preciso ser forte para não ceder a formalização em massa, e para trazer ar fresco a esta problemática é preciso não só habilidade e conhecimento, mas também contatos e um discurso coeso de convencimento.

    Um abraço a todos.

    Gabriel Cicconi

    3 de dezembro de 2012 at 9:12 pm

    • “onde a fotografia surge da própria fotografia, diferentemente da sociedade européia onde os primeiros fotógrafos vinham de uma educação estética proveniente das artes plásticas arraigadas muito fortemente na cultura ”

      Que excelente sacada! Obrigado.

      Ivan de Almeida

      7 de dezembro de 2012 at 2:37 pm


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