Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

A Cena e o Assunto

with 10 comments

Ivan de Almeida
agosto de 2007

Republicação – originalmente na newsletter Fotografia em Palavras

Modificado e acrescido em 03 de junho de 2009._IGP0278_DxO

Há cerca de dois meses (referência à ocasião deste artigo)  atrás fui jurado de um concurso de fotografias de um fotoclube. Pelos títulos das fotos, inferia-se o que o fotógrafo pensava ter fotografado. Mas, muitas vezes, ao examinar a fotografia eu observava uma incompatibilidade ou entre o assunto e as regulagens adotadas ou em relação à composição, em resumo: entre o assunto enunciado no título e a fotografia mesma. Podia ser o fato do foco ficar em outra coisa, podia ser o fato do assunto não ficar em uma posição forte na foto. Isso perpassava uma grande parte das fotografias, a grande maioria delas, aliás. Aquilo que o fotógrafo dizia ser sua foto não era, o observador não veria a foto assim, e mesmo o título não dava suporte suficiente para a leitura pretendida.

Minha conclusão foi a maioria das pessoas não possuir suficiente treinamento na análise de mensagens visuais, isto é, não dominar essa leitura como uma “gramática semântica”, isto é, uma gramática que faz significar e não somente arranja corretamente elementos.

Uma fotografia é uma cena. Uma cena simples ou complexa, mas sempre uma cena. Os diferentes elementos da cena fazem dela um envelope para uma mensagem qualquer. A palavra mensagem é perigosa, pois normalmente é entendida como uma mensagem verbalizável, e nem sempre é, pode ser uma sensação, uma maneira de sentir. Hoje, por exemplo, vi uma foto de meu amigo Rodrigo feita de sua mulher na janela, e em mim foram evocadas lembranças de dias calmos em casa, dias luminosos. Em mim ressoou uma lembrança que posso mesmo citar e descrever parcialmente, sendo, contudo, vasta, cheia de sutilezas, indescritível plenamente. O que era a foto? Só sua esposa de perfil em frente a uma janela e com o céu aparecendo através dela. Ao vê-la lembrei-me de tantas tardes calmas em minha casa, do sentimento de conforto e proteção dado por nossa casa, e assim a foto ressoou em mim uma mensagem que não pareceria estar lá se eu somente listasse os elementos da cena.

Evidentemente, após perceber em mim o que a foto tinha evocado, voltei à foto e entendi o papel de cada elemento na produção dessa mensagem não-simbólica (no sentido de não codificada em um símbolo definido, mas emergir de um arranjo). Essa mensagem não é uma sensação ao acaso, aleatória ou subjetiva. É sim uma sensação que pôde ressoar em mim porque eu tinha vivências parecidas para construir a ponte de comunicação, e para traduzir a mensagem nos termos das minhas vivências. Os seres humanos têm um grande espectro de vivências semelhantes, e isso faz funcionar e torna possível a comunicação entre eles.

Mas o Rodrigo é fotógrafo sagaz, e assim a mensagem estava lá, clara, embora complexa, direta, embora sutil. O que ele retratou fui a sua vida, mas eu a li com a minha, com o que nas minhas lembranças encaixava-se naquela descrição, pois as vidas humanas são parecidas.  Um pouco como ler Proust nno Em busca do tempor perdido.  Paradoxalmente, uma mensagem que exigia bastante matéria poética –pois a matéria poética é exatamente a revivescência dessas sensações da memória- era clara e completa, e tantas das fotos vistas no tal concurso com menos matéria poética e mais prosa, eram inadaptadas aos seus assuntos.

Chamo aqui de prosa, ou de descrição verbal a imagem cujo conotativo é igual ao denotativo, pedindo essas categorias emprestadas ao Clicio (veja aqui uma postagem onde fala disso lateralmente). Ou, se não igual, pois é impossível ser exatamente igual, é suficiente a ponto de se poder dizer haver na mensagem visual o denotativo (referente) e nada mais ser perguntado. Assim, na foto do Rodrigo poderíamos dizer: “É uma foto de uma mulher na janela”. Isso é uma leitura verbal da foto, cada coisa é aquilo que simboliza: Janela-mulher-exterior.

Chamo aqui de prosa, estendendo um pouco a questão,  aquela narrativa fotográfica diretamente apontada para uma leitura. Por exemplo, um relógio jogado no chão. Não é preciso buscar do fundo de nossas memórias a correspondência entre o relógio quebrado e alguma sensação de perda de tempo. Basta procurar entre as pinturas do Salvador Dali e encontraremos essa simbologia. Nós mesmos, em nossas vidas, temos poucas vivências de relógios quebrados, e eles nada têm a ver com perder tempo, mas já vimos uma infinitude de vezes nos meios de comunicação essa simbologia. Uma foto assim é uma foto de leitura altamente codificada, e não uma foto poética. É uma sentença em prosa. Deveria, portanto, ser evidente e clara, pois é mais fácil conjugar símbolos definidos do que sensações inefáveis. Contudo, tenho visto inúmeras fotos nas quais a intenção do autor e os símbolos arranjados na foto estão em desacordo.

Normalmente, quando a narrativa é tão somente a exibição de um objeto, há pouca margem para erro. Pode ficar melhor ou pior, mas existe, até por falta de opção, correspondência entre narrativa e assunto. Uma flor. Um dado. Um lápis colorido. Um carro. O objeto exibido esteticamente. Não há muito engano nisso. Bastam, para isso, as abordagens técnica e estética, pois a narrativa está subentendida no projeto da foto.

Muitos confundem isso com clareza de intenções. Bem, é fácil ter clareza de intenções se as intenções são pouco complexas, mas a narrativa fotográfica em seu maior interesse começa bem além disso, começa quando conjugamos vários elementos em uma narrativa, quando pequenas coisas são parte da mensagem, quando a foto é espessa em leituras, quando há mais nela do que a soma suas partes enumeradas.

Há algo muito diferente em uma foto que, pela maneira como a janela é, pela posição de alguém, pela luz e pelas sombras, evoca-me lembrança de calma doméstica, e outra que exibe um automóvel perfeitamente mostrado com cores reluzentes, mas só me evoca a perfeição impossível narrativa midiática. O primeiro tipo é vivo, é poético, é recheado de partes sutilmente a lembrarem algo inefável. O segundo tipo é direto, sintético, nada evoca, só mostra.

Porém, mesmo na foto poética é preciso ter clareza de intenção. Talvez nela seja mais importante ainda ter essa clareza, pois cada coisa ali nada vale sem as relações internas. Não é uma imagem, é um conjunto de sinais, e esse conjunto de sinais deve ser ordenado de tal maneira que provoque a leitura intentada pelo fotógrafo.

E é preciso desenvolver uma leitura da foto capaz de permitir essa análise, e isso é algo aprendido. Talvez seja um tanto nebuloso ao início mas e algo cujo costume faz ficar mais e mais fácil, e é essencial para o entendimento das narrativas fotográficas.

Tomemos as seguinter orações e vamos imaginar fotos que as ilustrem:

  • Um homem olha uma casa.
  • Uma casa é olhada por um homem.

Aparentemente, é a mesma coisa, só mudando da Voz Ativa para a Voz Passiva. Mas não é. O Roman Jakobson, o linguista, bem mostra isso, esse entrelace entre a forma e o significado que é cambiante ao se passar da Voz Ativa para a Voz Passiva. Se fôssemos fazer uma foto da primeira frase, poderíamos colocar um homem em primeiro plano e uma casa à média distância. O homem –sujeito- estaria olhando para a casa –objeto.

Mas a segunda frase exigiria um arranjo diferente. Agora o sujeito é a casa. A casa deverá ocupar o lugar principal da fotografia, e o homem o de detalhe.

Ao fotografar alguma coisa, alguma cena complexa, é preciso ter clareza sobre a posição de cada elemento no conjunto da cena, se sujeito, se predicado, etc. É uma sintaxe visual.

Nas fotos do tal concurso, na maioria das vezes a relação entre o sujeito e o predicado não estava própria. Algumas vezes, havendo dois elementos, ambos tinham a mesma importância representativa, então um não subordinava o outro. Outras vezes os ajustes do foco, da exposição, contrariavam o assunto, dando relevo a coisas desimportantes ou descasadas, e a foto ficava sem mensagem clara.

A identificação do assunto, do que é mesmo que será fotografado, a hierarquização da cena a partir disso, essas me parecem escolhas capitais para produzir uma cena complexa ordenada. Ela será ordenada pela hierarquia dos objetos, hierarquia que consiste em posição, tamanho, foco, aproveitamento de linhas etc.

A fotografia poética, aquela na qual há algo mais do que uma lista de objetos nela representados, exige grande compreensão da dinâmica de interpretação de cenas. O assunto da fotografia muitas vezes não está nos objetos representados e sim na peculiar maneira de mostrá-los.

Written by Ivan de Almeida

3 de junho de 2009 às 7:28 pm

10 Respostas

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  1. Muito prazer Ivan. Me chamo Rafael e venho lendo seus textos nas últimas semanas. Eles são bem esclarecedores, principalmente pra mim, pois estou começando, eu diria, a galgar novos caminhos na fotografia. Obrigado por compartilhar seus pensamentos e experiências.
    Só gostaria de lhe dar uma dica: uma rápida revisão no texto antes de publicá-lo sempre é válido para corrigir alguns pequenos erros de digitação. Como trabalho num ambiente corporativo e escrevo centenas de emails por dia, me habituei a fazer uma revisão em qualquer texto com mais de duas linhas e em 90% dos casos encontro passagens que precisam ser melhoradas, seja uma correção simples, seja uma nova estrutura para a frase.
    Um abraço.
    R.B.

    Rafael Barbosa

    12 de novembro de 2009 at 8:05 pm

    • Obrigado, Rafael.

      Você não está errado quanto às revisões, mas como dizia o Monteiro Lobato, há um diabinho das revisões que por mais que as façamos, sempre escapa algo. E escapa por um motivo simples: ao lermos nossos próprios textos lemos seguindo as idéias. Ao lermos os textos alheios, seguimos as palavras. Então ao lermos nossos textos somos condizidos de idéia em idéia, damos pulos na sintaxe, etc.

      Escrevo bastante postando na rede, provavelmente um texto desse tamanho todo dia, sobre diversos assuntos. Há algum tempo passei a aceitar o caco ou entraria em uma fobia revisora que, para minha motivação, seria esterilizante. Veja: não defendo o erro, absolutamente, mas, a não ser em correspondência formal, prefiro aceitar os cacos a tolher-me na escrita, sem embargo de poder periodicamente passar um pente mais fino nos textos anteriores (o que nunca fiz, confesso -risos).

      Só para você ter uma idéia de como a coisa é complicada, nesse seu comentário mesmo há uma questão de paralelismo no primeiro parágrafo… Se em um concurso público rigoroso você escrevesse: “Obrigado por compartilhar seus pensamentos e experiências.” perderia pontos, pois o corretíssimo é: “Obrigado por compartilhar seus pensamentos e suas experiências”.

      Grande abraço,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      12 de novembro de 2009 at 9:50 pm

      • Sem dúvida você é um cara letrado e parece saber o que está fazendo. Bom saber que o assunto já passou pelo seu crivo e você tem um plano.
        Só para me fazer claro, o objetivo da revisão não é corrigir erros avançados, gramaticalmente falando, e sim alguns mais simples e rápidos. Coisa como a falta de uma preposição ou um artigo mal colocado.
        Bom conversar com você.
        Espero esbarrar novamente com você, digitalmente ou não, pelos foruns fotográficos.
        Um abraço.
        R.B.

        Rafael Barbosa

        13 de novembro de 2009 at 3:49 pm

      • Rafael;

        Você tem toda razão, desculpe-me a brincadeira do paralelismo na minha resposta – rs.

        Mas a rede nos faz menos exigentes, é como se o texto não fosse nunca definitivo, fosse sempre mole, aberto, e, de fato, se fosse me preocupar em rever minuciosamente tudo eu postaria menos. É uma escolha, e aceito os senões dela.

        Qualquer hora faço uma revisão geral nos textos. E ainda vão sobrar cacos, tenho certeza.

        Grande abraço,
        Ivan

        Ivan de Almeida

        13 de novembro de 2009 at 6:42 pm

  2. A distinção acima é inteiramente fantasiosa. Ler é penetrar diretamente no sentido do que está sendo dito. Quem lê “palavras” (como a criança ou o analfabeto funcional) não está realmente lendo.

    Ler é “seguir as idéias”. Revisar é “seguir as palavras”. E pouco importa de quem é o texto – se é que o texto realmente pertence a alguém.

    No mais, e independentemente das revisões ou da ausência delas, obrigado por compartilhar suas idéias neste espaço.

    Um abraço,
    Francisco

    http://rhizoma.blogspot.com

    Francisco Fuchs

    9 de julho de 2011 at 2:03 pm

    • Obrigado pelo comentário, Francisco.

      O fenômeno que ocorre quando revemos os nossos textos é que seguimos o discurso mais do que realmente lemos no sentido de sermos atentos à grafia das palavras, porque somos induzidos por uma espécie de hipinotismo pelas próprias idéias, pela forma narrativa, etc. Por essa razão, os erros de ortografia e até alguns pequenos de regência ou concordãncia passam desapercebidos. Já quando fazemos uma revisão nos textos alheios somos mais desapegados, então pdemos de fato ler as palavras em sua grafia, e não sermos tragados pelo seu sentido no texto a ponto de ser obliterada, à nossa consciência, sua grafia.

      (contudo, achei a distinção foita por você no comentário rica analiticamente)

      Grande abraço,
      Ivan

      Ivan de Almeida

      9 de julho de 2011 at 6:09 pm

  3. Parabéns pelo blog, achei bem informativo e enriquecedor. Estou iniciando no mundo da Fotografia e aprendendo muito também através dos seus textos. =)

    Ana Claudia

    13 de fevereiro de 2012 at 2:03 pm

  4. Sobre o comentário lah de cima, desculpe-me qualquer coisa, mas lembrei do meu avô dentista, eu odiava falar com ele ou lhe sorrir , pois nunca prestava atenção no que eu dizia, sempre via algo na minha boca…rsrs . Abçs!

    Ana Claudia

    13 de fevereiro de 2012 at 3:38 pm

    • Pode deixar que não vou reparar nos seus dentes, Ana -risos

      Ivan de Almeida

      13 de fevereiro de 2012 at 7:39 pm


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