Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

Criação e limites

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Criação e limites.

Ao moldar a argila, o escultor não deseja que ela seja mármore. Não deseja que ela se solidifique rapidamente, não deseja que ela seja colorida. A argila em si contém suas possibilidades e os seus limites, e moldar a argila implica em conhecer ambas as coisas, o que ela possibilita e o que ela não possibilita. E o mármore, com outra resposta à ação do escultor, também define um leque de ações compatíveis com esculpi-lo, e essas não incluem aquelas próprias ao barro.

Quando estudava arquitetura, alunos, vivíamos em revolta contra os temas dos trabalhos que nos passavam. Todos pareciam tolher nossa imaginária criatividade, nós sempre desejávamos fazer qualquer coisa, menos aquela que nos pediam para fazer. Aquela nos parecia uma afronta, um limite. Uma bitola.

Mas, quando vamos vivendo mais, percebemos a relação íntima entre a criação e os limites, a tensão entre essas duas coisas, a indissociabilidade delas. Percebemos que a criação não se faz sem os limites, mas, ao contrário, que ela acontece no flerte com os limites, ao redesenha-los, ao explora-los, ao buscar dentro de um espaço de expressão a expressão.A simples negação dos limites é estéril devido à própria natureza do processo de se criar algo ou de se fazer algo.

Porque ao fazermos algo, a feitura é uma sucessão de escolhas. Assim sendo, cada escolha define os limites da escolha subseqüente e essa é contingenciada pela anterior. Fazer algo é uma cadeia de escolhas na qual uma escolha determinada depende da anterior e contingência a posterior, e ainda que o início tenha sido na mais completa ausência de determinações, é através da construção de determinações que se avança. Fazer algo é uma destruição progressiva de liberdades e indeterminações no caminho de uma definição precisa que nega essa indeterminação.

Mas, na fotografia, vemos constantemente uma idéia de criação sem limites e uma busca de instrumentos não limitantes. Ora, todos os instrumentos são limitantes, cada um ao seu modo. Os instrumentos são como o mármore ou a argila, isto é: há uma imbricação entre o que são e o que possibilitam, e ao mudarmos de instrumentos não nos livramos dos limites, apenas os trocamos por outros. Não é como se uma câmera grande formato incluísse todas as possibilidades de uma médio formato, essa incluísse as de uma reflex 35mm, essa incluísse as de uma compacta. Não são círculos concêntricos, há especificidades nas quais a escada fica invertida.

Contudo, talvez falte na cultura da fotografia, talvez porque essa seja muito impregnada pelo mito do equipamento, a noção da força criativa do binônimo porssibilidades/limitações. Enquanto o gravurista que pratica xilogravura ama as sérias limitações do “carimbo” de madeira que é sua matriz, e seu desafio é exatamente extrair da rudeza desse carimbo a expressão artística, o fotógrafo não raciocina assim, do meio para o conteúdo, mas prevalentemente do conteúdo para o meio. As razões disso são várias, e podemos citar que na fotografia ocorre em geral um baixo exercício de artesanato primário, isto é, artesanato diretamente sobre o material (exceto nas etapas de reprodução/copiagem tradicionais, mas atualmente essas etapas também tendem a elidir o artesanato), ocorre um pensamento geral de prevalência do objeto sobre o ato fotográfico (mesmo quando o fotógrafo tem consciência do inverso), e ocorre uma espécie de hierarquia de equipamento baseada em fatores de preço, posse, complexidade de operação e tamanho. Há outros fatores além desses. De toda forma, cosnsicentemente ou não, ocorre entre os fotógrafos a idéia de uma fotografia hierarquizada pelas capacidades técnicas do aparelho.

É bastante sintomático haver uma preocupação atual enorme com a gestão de cores, visando a reprodução das cores exatas do objeto. Isso é mais que compreensível em fotografias de produtos, de tecidos, de moda ou todos aqueles campos nos quais seja necessária uma fidedignidade na representação do objeto, mas não tem nenhum sentido no restante dos ramos fotográficos. A fidedignidade, sob certo ângulo, opõem-se à expressividade porque implica em um compromisso maior com o objeto, e o ato de fotografar torna-se uma busca de acurácia. Contudo, os muito louvados filmes coloridos ou cromos nunca foram fiéis reprodutores de cores e de tonalidades. Cada filme exibe um tipo de desvio característico, e embora desde sempre houvesse técnicas para a busca de aproximação das cores da fotografia das do objeto real, pela dificuldade isso ficava confinado aos ramos onde tal coisa é de fato crítica, enquanto hoje se observa um espalhamento dessa preocupação para ramos não-críticos.

Ora, essa mudança de paradigma traz consigo o esforço para disfarçar, elidir, o artesanato no sentido dele ser a influência inevitável do meio. Há uma busca do meio neutro, como se tal fosse possível. Nada mais diferente da atitude do xilogravurista. Há um livro do arquiteto Sérgio Ferro no qual ele diz que o desenho (projeto) é uma ordem cujo cumprimento implica em ocultar a “mão” (aretesanato) do executante em prol de uma aparência universal. O executante (operário) é desejavelemente neutro, e o traço de sua mão na obra é um defeito a ser evitado. Assim tem sido pensado, o artesanato, na fotografia também.

Isso se mostra na mudança radical de comportamento em relação à cópia. Enquanto a ampliação convencional em PB era precipuamente artesanal, e a fotografia copiada definia-se em contrastes, intensidade conforme essse artesanato quando não muito mais em tratamentos localizados, hoje a etapa de copiagem foi bipartida de tal maneira que o fotógrafo deseja tão somente que a impressora reproduza fielmente o que está na tela. O esforço do impressor é valorizar aquilo que está na tela dentro de uma reprodução a mais aproximada possível. Monitores calibrados e impressoras calibradas, em uma etapa a mais neutra possível.

Conquanto isso seja natural em um modelo no qual os impressores não são os autores das fotos que imprimem (evidentemente, em muitos casos impressores são fotógrafos também, mas adotam atitude semelhante em relação às suas obras), o que os leva à busca de fidedignidade dentro do escopo da prestação de serviços, para que o mesmo não se transforme em uma co-autoria, qualquer gravurista perceberia nisso perder-se uma etapa criativa. Porque a impressora, ela mesma, é uma argila com seu comportamento típico, suas respostas típicas que não apenas podem ser objeto dessa tentativa de anulação e neutralidade (fidedignidade) mas também de aproveitamento dos desvios, da mesma forma como o xilogravurista aproveita as inevitáveis texturas da madeira que usa como matriz. Evidentemente a impressão tornar-se-ia, assim, parte da autoria.

Em todos esses casos, vemos que há uma idéia presidindo e conotando a maioria das abordagens. Uma idéia de obra imaterial, seja porque é vista como captura de um algo cuja existência é lá fora, seja porque há uma mitologia de transcrição perfeita desse algo, seja porque a imagem deixou de ser compreendida como determinada em um papel que a concretiza, mas existe imaterial, matemática (binária), só limitada por espaços de cor que são de quase impossível distinção ao vermos a imagem na tela (desde que, é claro, a conversão da imagem entre os espaços garanta a fidedignidade perceptual, coisa que também é buscada).

Ora, na obra imaterial não há lugar para um artesanato físico. Quando a fotografia é pensada como obra imaterial, perde-se a noção do artesanato físico e junto com isso perde-se a noção das relações entre as limitações e possibilidades que o artesanato físico contém. Em lugar disso, a obra imaterial leva a pensar em uma liberdade absoluta em relação aos meios, o que leva, a seguir,  a pensar em  liberdade como ausência de determinações. A bem ver, o tratamento das imagens nos programas como o Photoshop, Lightroom e outros é uma etapa onde há artesanato, mas pela forma como essa é operada, pelos limites imprecisos dessa, não se tende a ver a coisa dentro do pensamento típico do artesanato, qual seja, dessa atividade como constituinte principal do processo, mas tão somente como uma etapa de melhoramentos de algo já existente, conquanto haja algumas atitudes (HDR e semelhantes) nas quais a artesania dessa etapa é constituinte.

A noção de imaterialidade da fotografia é completamente coerente com essa noção de liberdade criativa absoluta que não contém em si as limitações de um meio de expressão, ou que elide essa dualidade. O ocultamento dessa relação é um fato empobrecedor. Perdem-se possibilidades criativas simplesmente porque são vistas como espúrias, vistas como meros erros no processo de materialização da coisa imaterial que é a fotografia.

compacta Panasonic FH24

Um dos mais clássicos exemplos é a manifestada incompreensão predominante a respeito das câmeras digitais compactas de sensores pequenos. A grande maioria dos fotógrafos as encara como câmeras de possibilidades limitadas, o que também são, mas desconsidera a profunda implicação delas trabalharem praticamente todo o tempo em hiperfocal ou em modo equivalente em termos de nitidez dos planos, isso provocando possibilidades únicas, quais sejam as de se fotografar em grandes aberturas e ter nitidez em todos planos da fotografia. Essa marca essencial, a ausência do desfoque, é sempre vista como uma limitação, e raramente como uma característica de linguagem.

A fotografia em película mantinha mais unido o fotógrafo à concretude da mídia. Grãos da fotografia eram percebidos semelhantemente aos veios da madeira da xilogravura, algo essencial e característico da materialidade do meio de expressão. Na transição para a digital a fotografia se idealizou, perdeu o vínculo material, e nessa perda acontece reforçada a idéia de ilimites, de liberdade incontrastada, em lugar da idéia de liberdade exercida pelo uso criativo das injunções de um meio ou processo.

Written by Ivan de Almeida

17 de junho de 2011 às 4:09 pm

6 Respostas

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  1. Ótimo texto, definiu bem em palavras a questão. Sobre o uso de compactas, há alguns anos atrás eu havia lido uma matéria sobre um fotógrafo documentarista que dizia adorar trabalhar com compactas digitais, pela sua discrição (que equivalia à de uma rangefinder) e profundidade de campo enorme. Para contornar o problema do shutter lag (que naquela época era bem maior do que hoje em dia nas compactas) ele carregava duas ou três câmeras penduradas no pulso, todas ligadas, e ao clicar com uma já passava para a próxima. Infelizmente eu não lembro o nome dele e nunca mais consegui encontrar a matéria, mas acho um exemplo bom de como não é preciso considerar reflex ou mesmo uma rangefinder de filme, que também seria opção para ele naquela época, melhor do que câmeras baratas compactas. Se você ou algum leitor do blog conhecer este fotógrafo, peço a gentileza de me passar seu nome.

    leandromise

    19 de junho de 2011 at 2:05 pm

    • Leandro, eu conheço esse fotógrafo, é do quadro da Magnum, chama-se Alex Majoli. http://www.robgalbraith.com/bins/multi_page.asp?cid=7-6468-7844

      Ele usa a grande profundidade de campo aliada ao pequeno tamanho, extraindo das compactas um uso que não seria fácil conseguir em uma DSLR. Isso é compreender a relação entre meios e resultados.

      Quando usamos uma compacta -e recentemente passei 15 dias usando uma- simplesmente pensamos de forma diferente. Essa relação entre meio e resultado é um pouco esquecida na fotografia, ou melhor, é substituída pelo mito do equipamento todo-poderoso.

      Mas, para além da captura, isso, o esquecimento do meio em prol de uma idéia de uma imagem imaterial continua no mito da cópia neutra, etc. Por que a cópia tem de ser neutra? A resposta é simples: Porque não é o próprio fotógrafo que a produz. No entanto, quando o próprio fotógrafo é o impressor, o mais rico seria usar a etapa de copiagem como etapa criativa.

      Ivan de Almeida

      20 de junho de 2011 at 11:56 am

  2. Excelente texto. Você me abriu os olhos com a frase “desconsidera a profunda implicação delas trabalharem praticamente todo o tempo em hiperfocal ou em modo equivalente em termos de nitidez dos planos”.

    Ocorre que, toda vez que uso (ou usava) a minha S90 eu ficava tentando fotografar com o mesmo estilo de uma full frame e, obviamente, com resultados incorretos.

    Vou mudar a minha abordagem, quando usar uma compacta.

    Muito obrigado.

    Nilo

    20 de junho de 2011 at 2:52 pm

    • Sou eu quem agradece, Nilo.

      No caso das compactas, desde que se compreenda o que fazem bem, elas naquilo são ótimas.

      Abraços

      Ivan de Almeida

      20 de junho de 2011 at 5:16 pm

  3. Prezado Ivan
    Vou fugir do tema proposto por você e comentado por alguns de seus leitores. Na verdade, descobri o seu Blog recentemente e estou apreciando muito os temas abordados. Confesso que nos últimos dias o Blog é, para mim, objeto de leitura diária. Também pude observar as suas fotos e gostei da sua maneira de ver e “enquadrar” o mundo. Salvo engano, percebo no seu trabalho a preocupação com a luz adequada, o equilíbrio na composição da imagem e, com isso, você chega a um resultado estético muito interessante.
    Gostaria de submeter a sua apreciação algumas imagens que compõem o meu acervo fotográfico, mas,no entanto, não localizei o seu endereço de e-mail. Você poderia me fornecê-lo?
    Abraços! Parabéns pelo Blog e pelas fotos.
    Vander Bras – Fotógrafo /BH / MG
    vbrasbh@hotmail.com

    Vander Bras

    28 de julho de 2011 at 12:58 pm

    • Obrigado, Vander. Mandei um email para você.
      Abraços

      Ivan de Almeida

      28 de julho de 2011 at 6:30 pm


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