Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

A SEGUNDA CAPTURA – agora sem a câmera

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Ivan de Almeida

Henri Cartier-Bresson costumava examinar seus contatos de cabeça para baixo para escolher as fotografias a serem apliadas. Amante da composição formal, com as fotos de ponta-cabeça ele podia observá-la sem a interferência do referente, da coisa representada na imagem. Provavelmente as fotografias dele conhecidas são, em grande parte, as escolhidas através desse aparentemente estranho processo. Obviamente, ele não fez apenas aquelas fotos que nós conhecemos ou aquelas dadas ao nosso conhecimento. Fez outras muitas, e a maioria das fotos permanece desconhecida, não sendo “suas fotos” para efeito da consideração de sua obra. Se alguém tentasse mostrá-las como fotos do Bresson isso seria uma inverdade, apesar de terem sido feitas por ele, pois ele não quis assim mostrá-las. Mostradas agora só poderiam servir como elementos de compreensão biográfica.

Todo fotógrafo tem uma parte pequena de suas fotografias conhecidas. A ponta de um iceberg cuja parte oculta é imensa.

Minha sogra voltou de um cruzeiro com o cartão carregado de fotografias, levou-o a um laboratório e mandou fazê-las todas. Antigamente, também levávamos um filme a um laboratório e mandávemos “fazer todas, exceto as que não saíram”, pois o filme não tinha existência senão nas cópias em papel. Mas isso denota uma prática muito diferente daquela dos fotógrafos mais envolvidos com a fotografia.

Para esses, podemos dizer haver um momento posterior ao disparo da câmera no qual acontece um segundo disparo, uma segunda escolha. Nesse momento o fotógrafo escolhe se aquilo registrado é ou não parte de sua produção se é ou não pertinente, se merece ser mostrado, se de alguma maneira acrescenta significado ao seu trabalho ou relaciona-se com ele.

Entre fotógrafos iniciantes, vemos muitas vezes uma reação a alguma crítica recebida numa foto mais ou menos assim:  “mas eu não tinha melhor condição para esta fotografia”. Sim, isso pode ser verdade e provavelmente é, mas… por que a tal fotografia foi escolhida para ser mostrada? Pois, contrariamnente ao normalmente pensado, não é na hora do disparo que a fotografia insere-se na obra de cada um, mas ao escolher a foto como respresentativa da obra. Por que esta? Muitas das fotos que vejo mereceriam esta pergunta. E provavelmente o autor não saberia responder. Responderia, talvez:: “– Ora, porque ficou boa!

Contudo, tentar responder a esta pergunta pode lançar luz sobre pontos cruciais da criação fotográfica, permitindo ao fotógrafo conhecer suas motivações, ou mesmo a indefinição – se for o caso- de suas motivações.

Muito se fala sobre a captura; a gravação da imagem no filme ou em um arquivo binário. Tanto se fala disso a ponto de parecer ser ali que a obra se cria. Mas se olharmos bem, é apenas uma etapa gerativa de um material vasto e crú. E isso forma, aqui aproveitando expressão do HC-B, meramente uma coleção de croquis, de rascunhos, mesmo quando -e alguns fotógrafos conseguem isso- não haja nenhuma imagem deficiente ou inaproveitável. Mas são croquis não por serem imperfeitas, mas por não terem sido elevadas à categoria de obra mostrada, ou mostrável.

Nesse momento da seleção o fotógrafo torna-se comprometido com aquela fotografia. Torna-se comprometido com ela como ela é (obviamente isso não exclui seu tratamento, cujas possibilidades estão incluídas nessa escolha). Talvez esse momento devesse ser pelo menos tão considerado quanto o momento da captura. Talvez o momento da captura, com a mitologia nele apoiada, esteja sobrevalorizado, e essa sobrevalorização mítica ajuda ao fotógrafo a esconder as entranhas do processo de geração de imagens onde a produção de imagens ruins, fracas, menos boas ou exploratórias, ou como quer que as chamemos, ocupa tão grande parte. Alguns fotógrafos são bastante econômicos nessa seleção, e isso, somado ao mito da captura induz a uma imaginação de prática exímia além até dos limites do possível.

Por que uma determinada foto é mostrada?

Por muitos aspectos seria importante prestar a devida atenção a esse momento de seleção. Ali o autor está de frente às suas motivações, e pode reconhecê-las. Podemos imaginar, em uma situação hipotética, que dois fotógrafos diante de um lote de fotografias a serem escolhidas, sendo dito a eles as terem feito enquanto sonâmbulos, escolheriam fotos diferentes para publicização. Não é questão das fotos serem boas ou não, elas não são escolhidas por serem boas ou não, ou pelo menos não exclusivamente por isso. Elas são escohidas porque representam a mensagem daquele fotógrafo, representam uma continuidade dela, expressam seus valores e suas preocupações.

A fotografia-click é apenas um mito. Um dos muitos mitos da viçosa mitologia da prática fotográfica, talvez um dos maiores. Os mitos, infelizmente, não são inofensivos. Este impede aos iniciantes compreenderem a verdadeira dimensão da fotografia dos mais experientes e impede aos mais experientes conhecerem a si mesmos. Parece haver quase uma vergonha dessa parte oculta existir, imperfeita, por vezes tosca, e talvez por isso finja-se sua inexistência.

E esse processo de escolha é parte essencial da construção da imagem fotográfica.

Written by Ivan de Almeida

24 de maio de 2009 às 7:39 pm

13 Respostas

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  1. É isso mesmo, Ivan. A escolha, no meu caso, quando tenho que mostrar sériamente (concurso, portfólio, etc.) é dramática mesmo. Acredito até não saber fazer as escolhas corretas. Certa ocasião, estava por aqui o Diógenes Moura e aproveitei para mostrar uns ensaios que estava fazendo e ele rapidamente selecionou algumas, colocou-as numa sequencia e contou uma estória. Me disse ainda que, algumas descartadas, mesmo estando boas, não tinham uma linguagem universal e até atrapalhariam se colocadas junto as por ele selecionadas. Desde então isso me aflige mais que antes, ao ponto de andar procurando um WS que me ajude na leitura das minhas fotos descartando o sentimento do autor sobre elas.

    Grande abraço

    Wellington Dantas

    25 de maio de 2009 at 12:50 am

    • Pois é, Wellington. A existência desse segundo momento fica um pouco eclipsada pela mitologia do click.
      Não sei se é o caso eliminar o sentimento do autor, acho mesmo que é o inverso, isto é, ter clareza sobre esse sentimento no sentido de saber ver a mensagem passada.
      Obrigado,
      Grande abraço

      123rawfotos

      25 de maio de 2009 at 1:15 am

  2. Ivan,

    Gostei muito do artigo, acho que você pega um ponto nevralgico da produção fotográfica com muita clareza e pertinência. O mito da foto perfeita é um dos mais presentes na fotografia, especialmente na fotografia amadora. Uma vez que a produção de cada foto tem o seu início, meio e fim bem determinados, dá a impressão de que ela é estanque. E acredita-se que os grandes fotógrafos só fazem fotos boas.

    Não fazem, e provavelmente as fotos boas serão uma minoria, uma ponta do iceberg, como você falou. Numa reunião do fotoclube há uns 3 ou 4 anos, acho que foi o Bento que disse: “foto ruim a gente não mostra nem pra mãe!”.

    Mas não devemos esconder essas fotos de nós mesmos, pois elas provavelmente nos darão uma noção das nossas próprias intenções e do nosso processo evolutivo que é muito valiosa. Muitas vezes faço fotos que não funcionam (e aí não são mostradas mesmo, a não ser que seja para um grupo que compreenda bem essa noção de percurso), mas que expressam com clareza aquilo que eu estava buscando, portanto são úteis.

    Um abraço.

    Rodrigo F. Pereira

    25 de maio de 2009 at 10:57 am

    • Pois é, Rodrigo;
      Temos conversado bastante sobre as mitologias da fotografia. Penso haver, além da mistificação sobre quem começa, um efeito negativo sobre o proprio fotógrafo já mais adiantado, pois ele, ao não ter consciência dos porquês das escolhas -pensa ser somente questão de ficou boa ou não-, deixa de adquirir uma visão sobre seu processo pessoal, aqui entendido como algo que pode ser mapeado em suas características e a partir disso pode ser trabalhado com mais consciência. E esse segundo momento é um FAZER. Isso não fica claro, mas é um FAZER, uma mudança de patamar, uma transmutação de algo que passa do caderno de croquis para a obra. Não falo somente de “fotos ruinsX fotos boas”. Sou até relativamente desinteressado de algumas fotos boas minhas e muito interessado em algumas fotos ruins… Porque há fotos menos boas que são partes necessárias do caminho, e se eu não as reconheço, isto é, se eu não as FAÇO nessa segunda escolha meu processo geral não assimilará o conteúdo importante delas, pois eu não o valorizarei. É há outras que saem boas -hoje mesmo postei uma em um fórum e foi gostada por vários- mas embora boas não têm importância nenhuma, não são pedras do caminho que preciso pisar, são meramente fotos que deram certo em termos visuais. Nelas não há A Questão. Então esse meu texto fala disso, e fala contra essa atitude de “não mostrar fotos ruins nem para a mãe”, porque ao fazermos isso estamos mentindo para o mundo quanto à nossa excelência -mentira essa que pode ser necessária, não discuto- e estamos mentindo para nós mesmos, e aí sim é uma mentira prejudicial, visto ela implicar em um ignoramento, seja de nosso real estado, seja por implicar em preferir o vistoso ao verdadeiro, ao apontado para A Questão.

      123rawfotos

      25 de maio de 2009 at 12:55 pm

  3. Ivan,

    Excelente post, como sempre. A questão das fotos ruins que agregam conhecimento é fundamental, assim como saber enxergá-las.
    Congrats!
    Clic!o

    clic!o

    26 de maio de 2009 at 3:26 pm

    • Pois é, Clício, quando falo da seleção, na verdade há duas, aquela que cria a obra, e aquela que eleva certas fotos para podermos notar melhor, essas últimas não necessariamente boas. Em uma resposta em um fórum surgiu-me uma palavra: *contratar*. Isto é, nós contratamos alguns compromissos ao eleger uma determinada foto como significativa.
      Grande abraço,
      Ivan

      123rawfotos

      26 de maio de 2009 at 4:02 pm

  4. Boas pontuações, lembram algumas coisas que ó próprio comentou no documentário Contacts. É sabido que dificilmente Cartire-Bresson tornava público os seus contatos. Esse filme é fundametal para quem quer amadurecer esse processo.
    Abrs.
    Jônathas

    Jônathas Araujo

    28 de maio de 2009 at 9:16 pm

    • Obrigado pelo comentário, Jônathas. Há vários aspectos nesse “segundo fazer” que é a escolha, e no artigo tento mostrar não ser somente questão da qualidade -esconder fotos ruins-, mas principalmente esse autoconhecimento, essa distinção que entre duas fotos, talvez ambas boas, identifica uma delas como sendo obra e outra não. Obrigado pela indicação do filme.

      123rawfotos

      30 de maio de 2009 at 7:06 pm

  5. […] componente de nossa obra. A escolha das fotos postadas constitui um segundo ato fotográfico, uma Segunda Captura. A escolha é um processo incluindo desenvolver a fotografia para evidenciar as idéias nela […]

  6. Muito interessante este teu ponto de vista, de alguma forma, vai contra minhas postagens de fotos em fóruns.

    Geralmente só posto fotos que sei que estão ruins ou que não me agradam, isto com o intuito de alguém me dizer onde foi que errei, pois sei que nao me agrada a fototografia, mas não consigo enxergar o por que?Quase sempre leio coisas banais, que não agregam,
    postam e votam apenas para conquistarem um status maior dentro daquela comunidade e não rara as vezes vou aos seus flickrs e vejo coisas piores que as minhas, mas seus cometários dão a falsa impressão de que são melhores que Bresson.

    A escolha, penso, que em toda área constituir a etapa mais difícil, momente para o seu autor; lendo este teu texto, acabo de desobrir algo que preciso praticar, esquecer que fui eu que as fiz, creio que assim poderei escolher melhor aquilo que pretendo mostrar.

    E como o Clicio disse “A questão das fotos ruins que agregam conhecimento é fundamental, assim como saber enxergá-las.”

    Abraços

    Ricardo

    Ricardo Lou

    24 de outubro de 2009 at 2:21 am

    • Obrigado, Ricardo.
      Para mim há certas fotos, que não são aquelas de maior agradabilidade, que contêm um ensinamento, como um fragmento de outro no meio do cascalho, e sou interessando especialmente em perceber esse fragmento, em reconhecê-lo e em entender qual o motivo dele agradar-me. Geralmente quando isso acontece nesse fragmento há uma idéia nova, um viés novo, algo que não sabia, e entendo haver no fragmento uma primeira manifestação daquela idéia, a qual, depois, com calma, deve ser desenvolvida em outras fotografias. Mas se não souber reconhecer naquela primeira onde a idéia se manifestou, mesmo se a fotografia não for evidentemente vistosa, aí a idéia vai embora e se mistura novamente ao cascalho.

      Ivan de Almeida

      24 de outubro de 2009 at 12:14 pm

  7. “Porque uma determinada foto é mostrada”

    adorei o seu texto ivan :))
    abs
    vilma

    vilmamachado

    18 de janeiro de 2010 at 4:38 pm


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