Fotografia em Palavras

visões sobre a prática fotográfica, por Ivan de Almeida

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Uma Busca Fotográfica: Sem Rumo!

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Uma Busca Fotográfica
A Busca Inicial: Sem Rumo!

Primeiro de uma série de artigos sobre as fotos feitas diariamente entre 20 de junho e 19 de julho de 2016.

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Entrada de um prédio-vila na Rua do Catete

Ontem, 19 de julho de 2016, terminei aliviado um ciclo fotográfico que impus a mim mesmo. Pode parecer engraçado ler isso, alguém impor algo a si mesmo uma tarefa com prazo fixo, mas talvez a personalidade seja tão plástica que por vezes preciso impor um prazo, para ter certeza do que será buscado.

Desta vez foram 30 dias de fotografias, todas em Preto e Banco, todas quadradas (acho que houve um dia só perdido), todas com a mesma câmera. A câmera foi uma Panasonic  LX7, sucessora infeliz de outras Panasonic LX que tive, a LX1 e a LX2, esta última quebrada na última viagem que fiz. Caiu no chão de uma geleira em Ushuaia, Argentina, no início deste ano.

Aí, para substituí-la comprei a LX7, e tem algo nela que sinceramente não gosto. A LX2 era honesta, a fotografia era aquela que enquadrávamos. As linhas retas eram maravilhosamente retas graças à lente. Pois bem, a partir de certo modelo, a Panasonic colocou uma lente mais clara porém… um tanto esférica. Esta chega a f/1.4, e tem uma grande angular mais aberta, mas a foto é gerada com alguma esfericidade, e corrigida pelo software interno da câmera ou do Photoshop. Aí que sofrimento! Detesto corrigir fotografias, detesto fotografias corrigidas em sua geometria. E, naturalmente, detesto esta característica da câmera…

Enfim, vamos vivendo, vamos fazendo o que podemos. Mas sinto muita pena da perda da LX2 na geleira de Ushuaia. Câmera honesta.

O CICLO

Pois bem, há um mês, terminando ou quase terminado uma obra aqui em casa, resolvi cumprir esse ciclo: Pelo menos uma fotografia por dia, em Preto e Branco , em RAW (aliás todas as minhas são em RAW), quadrada, já que esta câmera faz fotos quadradas realmente assim limitando o próprio RAW (esta é uma boa qualidade desta câmera).

Em 20 de junho saí com a câmera regulada para PB, pois aí a composição em Preto e Branco ficaria mais clara, e fotografei.

Hoje olhando as fotos do primeiro dia as acho sem graça, comparativamente. Sem rumo. Sem unidade na escolha do tema.

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Galpão na Rua das Laranjeiras onde eram vendidas plantas

Neste primeiro dia saí andando caoticamente, comecei fotografando na Rua do Catete, fotografei um pouco numa transversal e depois fui ao Parque Guinle, com esperanças em relação a fotos figurando partes dos lindos prédios de projeto do Lúcio Costa, um dos grandes arquitetos brasileiros.

Olhando os resultados, não foram os prédios que me seduziram mais. Fora os cantos de construções menos louvadas, mais comuns, porém mais íntimas.

Escolhi para primeira a foto que gostei mais, e as outras aquelas que me interessaram também, ainda hoje.

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Portaria cinquentista

Nesta etapa, o fato da lente curva estragar a foto quando usava os conversores de RAW que mais gosto (perfectRAW é o que mais gosto) e me exigirem uma segunda etapa em que fazia o “serviço” que a Panasonic e o Photoshop escondiam, me aborreceu. Convertia no perfectRAW, gerava uma verdade abaulada e tinha de usar o Photoshop depois para retificar, como a câmera fazia ocultamente. Chato isso. Mais tarde, na série, abandonei o perfectRAW pois o Photoshop resolvia já na conversão, embora continue gostando muito menos da conversão do Photoshop.

De toda forma, após a conversão em cores as fotos eram abertas no DxO Filmpack 3 e nele convertidas em Preto e Branco, em seguida esta convertida era reaberta no Photoshop para reduzi-la ao tamanho para exibição no Facebook e aplicação de sharp. Claro, tudo isso com mais acertos, variáveis conforme a fotografia.

Mas, voltando à questão, pois a busca não era técnica e sim psicológica e estética, esta primeira sessão não teve unidade. Uma coisa estranha, pois em geral minha fotografia tem essa unidade. Porém o início deste ciclo foi assim. Saí, passeei e fotografei, sem uma idéia, sem unidade.

Essas fotos mostram aquilo que gostei mais deste primeiro dia.

O QUE VIRÁ

Obviamente, não serão escritos 30 artigos. Talvez 3, talvez cinco. Mas o início é em si início, é apalpar aquilo que será feito sem saber muito o que será. E foi assim que começou esta série. E é assim que começam os artigos.

Vamos ver se amanhã ou depois.

Written by Ivan de Almeida

20 de julho de 2016 at 12:36 pm

Dentro da Fotografia – o jogo da composição

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Dentro da Fotografia – o jogo da composição

Ivan de Almeida

6 de maio de 2013

   “É por isso que certos pensamentos não podem ser comunicados às crianças, mesmo que elas esejam familiarizadas com as palavras necessárias. Pode estar faltando o conceito adequadamente generalizado que, por si só, assegura o pleno entendimento.” Pensamento e Linguagem – L.S. Vigotski
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Fotografo há dezenas de anos, então vou deixar de lado todos os assuntos técnicos, mesmo porque é óbvio o conhecimento deles pela maioria dos leitores. Mas tenho  outro lado, que o que a fotografia tem e para ela é importantíssimo, e, de onde vim (da arquitetura na qual não mais trabalho e do estudo da percepção humana), há uma educação em parte do assunto, embora não tão profunda quanto deveria ser. Este lado é a composição.

A composição, quando lermos um livro do Le Corbusier (grande arquiteto francês, embora não fosse arquiteto –o irmão era-), importantíssimo na Arquitetura Moderna, leremos algo que é pouco dito e muito feito: a forma de proporcionalizar as construções, as fachadas, etc. Ele mostra fotografias de construções renascentistas e lá mostra a forma de obter proporção, isto é, as linhas organizadoras da posição das partes e seus tamanhos e proporções, que são linhas organizadoras ocultas mas existem. Mostra suas obras e como criou a ordem visual da fachada (a arquitetura dele ia muito além disso), isto é, o “desenho oculto” que organizava as janelas, os tamanhos, etc. Mostra nas obras dele, mostra nas obras renascentistas, mostra em obras gregas e em obras de civilizações anteriores à grega mais conhecida.

Ora, essa composição oculta, digamos assim, ao a olharmos nos deliciamos, sem entendermos a razão daquilo nos agradar tanto. Não é óbvio… Por que nos agrada? Esta é a resposta mais interessante… Uma composição nos agrada, falando da fotografia, porque embora na fotografia esteja tudo no papel, o olho não olha tudo de uma vez, e no mundo real, nos ambientes e construções, também não.  É uma coisa boba pouco percebida.

O olho consegue ver uma proporção de 5% do campo visual com nitidez, todo o resto do campo visual é embaçado. Mas nós não temos a impressão de ser assim, porque, aí vem a diferença nossa em relação à câmera, nosso olho muito rapidamente vai de parte em parte da cena voltando para esta parte o centro e a vê nítida, focaliza, e isso na nossa cabeça forma um conjunto. Mas, observe, movemos o olho, então é diferente da fotografia, pois ao movermos o olho movemos a direção da nossa “câmera interna”.

Mas, isto ainda é mais interessante, nosso olhar ao percorrer uma cena a percorre dentro de uma ordem de prioridade decorrente do que está sendo visto. Por isso ao ver algo nós olhamos para a coisa dentro de uma ordem de importância das coisas ali presentes e também de uma ordem formal. Essa ordem formal é importantíssima para o fotógrafo, o arquiteto, etc. A arrumação das coisas numa foto, digamos assim, nos induz a ver isso e não aquilo, nos induz a um ver o que é o objetivo da foto. E numa fachada de arquitetura idem, e numa decoração idem, e numa pintura idem. Há ênfase e há coisas não relevantes, e nosso olhar não vê as coisas irrelevantes. Não vê na visão normal, é claro, e se mandamos a pessoa examinar com cuidado tudo ela provavelmente verá muito mais coisas (não tudo).

Andamos na rua. Olhamos os carros, não olhamos os reflexos do mundo na lataria ou vidros dos carros. Ambos são visíveis, mas ignoramos uma das coisas visíveis porque nossa educação do olhar é uma. Uma ignora a outra.

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Somos fotógrafos. Então vemos coisas que os demais não veem, e devemos nos educar para vê-las. Ver o quê? Ora, ver não apenas as coisas retratadas mas sem consciência as proporções usadas, e essas proporções são, digamos, arrumações que jogam um bom jogo com os hábitos perceptuais, mesmo sendo esses hábitos pouco conhecidos.

Em termos tradicionais (na pintura, por exemplo), nos ensinamentos clássicos de composição, sendo que o Henri Cartier-Bresson foi assim educado por seus pais ligados à pintura de quadros, e ele, Bresson, estava sendo ensinado para pintura, as proporções clássicas todas são aprendidas. Número de Ouro, diagonais, terços, etc. etc. A fotografia do HCB é riquíssima nisso, é facilmente observável nisso. Evidentemente, para observar isso é preciso uma educação nisso.

Não significa um sofrimento enorme para a fotografia cumprir algo compositivo. Na medida em que nos educamos, vamos nos tornando habituais nisso e quase esquecendo que nos educamos, como se aquilo fosse natural, quando é educação estética. Aliás, a pior coisa da fotografia é a crença dos fotógrafos em “dom natural artístico”, pois isso os faz não estudarem os jogos de proporção, e por não estudarem ficam limitadíssimos. Acertam muitas, mas não acertam muitos tipos. No máximo desenvolvem um hábito em certos tipos.

Todos os grandes arquitetos estudaram isso. Todos os grandes pintores estudaram isso, muitos e muitos dos arquitetos mais conhecidos estudaram isso, mas é óbvio que ao vermos a obra ela não está ali com o método registrado. Mesmo na arquitetura aos olhos que não foram treinados para ver isso não veem, não percebem que isso existe ali. Acham só “bem composto”, ou “legal”, ou “fulano, você é artista”. Infelizmente as pessoas entendem artista como dom, e não como uma muito sutil educação sobre a percepção. O homem é complexo, então fazer arte não é só isso, isso é somado a outras tantas coisas, mas tudo é mutuamente definido, não é “isto ou aquilo”. No Rio de janeiro, por exemplo, há o Palácio Capanema, antigo Ministério da Educação quando o Rio era a capital. O prédio é belíssimo e é uma obra compositiva minuciosa, segue as idéias corbusianas incluindo nelas o requinte compositivo de forma absoluta. Mas o homem comum o acha um prédio lindo sem perceber o porquê. O homem comum não sabe ler as proporções, ela apenas acha uma delícia o belo que geram.

Bem… O estudo do proporcionamento é o item um, fácil de compreender. O estudo do jogo simbólico em face do proporcionamento é o item dois. Este é mais difícil de compreender em cada foto, mas um exemplo simples é um homem de perfil e uma casa. Caso o homem esteja proporcional à casa, nós lemos a foto como alguém que está entrando, saindo ou habitando aquilo. Caso o homem seja grande na fotografia e a casa pequena, aí vemos um homem que não pertence a ela, que está vendo de uma forma específica, etc. Ou seja, o significado é dado, em grande parte, por proporções e posições dentro da foto (falei de proporção, mas posição também, pois basta virar ao contrário o homem e ele muda de significado na foto).

Bem, tenho de encerrar esse papo… Foi feito para mostrar que entender a composição fotográfica é uma coisa maior. Que essa composição, minimamente e apenas abordando o principal, inclui proporção entre coisas, jogo de linhas, composição mesmo, como na arquitetura ou na pintura, assim como inclui o jogo de significados, que é a colocação das formas signficantes da fotografia, tamanhos, etc.

Toda fotografia é um discurso visual. Nenhuma fotografia é apenas aquela coisa lá fora que aparece na fotografia. A mais óbvia fotografia, a fachada de um palácio, um carro bonito, etc., joga o jogo compositivo, mesmo quando, como num palácio, o jogo é banal e comum.

Há outro jogo, este o importante para qualquer artista visual, que é aprender os jogos. O grande problema da fotografia é quando os fotógrafos acham que a composição boa provém do dom (embora possa provir de uma educação estética inconsciente) e por isso não estudam composição.

Antes, Fotografia. Agora, parte do mingau.

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Antes, Fotografia. Agora, parte do mingau.

Ivan de Almeida Junqueira

17 de janeiro de 1012

As imagens, antes poucas e por isso cada uma chamando a atenção de quem a via, hoje são o ambiente de viver. Ninguém presta tanta atenção ao ambiente costumeiro…

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Os olhos do mundo são as cãmeras diversas, as de fotografia, as das televisões, as dos os telefones que filmam ou fotografam.

De repente, esses olhos deixaram de ser uma luta para lidar com o campo do olhar, das representações com ele algo relacionadas e buscadas, e passaram a ser o olhar oficial do ser humano, da humanidade. O mundo é assim, é a afirmação contida em tudo isso.

De repente, as descrições idealizadas, ou reforçadamente ruins, ou reforçadamente boas, ou repetindo estruturas de captura fotográfica como a infinidade de mares e águas lisas desenhadas pela longa exposição, que há cinco anos maravilhavamquem as achava na rede e agora enjoam e por aí vai.

Porque agora as descrições fotográficas não mais são coisas novas, as mesmas que foram novas antes no mundo digitqal,  hoje são repetições. Porque a linguagem de imagens na época dos filmes antes tinha algo de exceção, de mais raras no mundo e hoje é banal, banal no tosco mas também banal no esteticamente desenvolvido na corrente principal. O hoje diferente um pouco amanhã é banal.

E não há corrente privada. A corrente privada pode ser aquilo que só ao fotógrafo interessa, a família, as pessoas conhecidas, porque esse mundo da imagens paradoxalmente não abraça as pessoas, todas aquelas que são mostradas são idealizações, positivas e negativas. São mostradas quando se encaixam no mostrar tido como o normal, mas esse normal não é nada mais que uma visão padronizada.

Hoje, depois de ter comprado um corpo de cãmera carinho, olho para tudo isso e penso sobre o que fazer, e não desejo mais tanto um fazer que olhado é gostado, quase que busco apenas algo meu, uma visão minha, pessoas que gosto quando são fotos de pessoas, imagens que gosto querendo colocá-las em parede. Na minha parede, inicialmente, porque nenhuma imagem desse tipo que não aceite colocar na parede posso supor boa para outros.

Há nisso muitos enganos, e eu me engano. Ontem lutei para imprimir uma fotografia que me parecia boa na tela. A imprimi num bom papel A4, depois a imprimi grande, num bom papel A3. Bom papel para testes, não para final, é claro. Mas ao olhar a impressão maior, ao ensaiá-la na parede usando uma moldura genérica que uso para isso, vi-me desinteressado na fotografia. A boa para a tela é uma coisa boba para a parede, vistosinha mas sem permanência maior. Aceito meus enganos. Tento aprender com eles, confesso que ainda estou longe de aprender e para mim não é claro quando uma ficará boba e outra, que parece na tela quase sem força, ficará como desejo e suficiente para existir na parede.

Isso seria ingenuidade minha? Talvez um pouco, mas o fato de julgar a fotografia pela sua existência em papel e não a visão na tela, isso não julgo ingenuidade, embora seja, reconheço, menos episódios de julgamento devido à menor quantidade de impressões.

Estou numa fase engraçada. Não quero mais um monte de coisas, quero outras. Quero uma fotografia simples, poucas lentes usadas, pouca projeção futura. Não quero afirmação de uma fotografia, mas pura e simplesmente tentar fotografias que o olho possa suportar por dez anos sem enjoar-se, mesmo que no início ela pareça pouca. Isso, neste mundo de tantas imagens, é uma espécie de Yoga, de meditação nas imagens, na fotografia, no seu próprio olhar, em como olha, em como separa algo do mundo para existir no retângulo representado.

Por paradoxal que seja, essa etapa sem planos, sem convicções afirmativas, essa etapa que parece um enfraquecimento na verdade é vivida com calma, com tranquilidade, com prazer visual, especialmente naquilo realmente buscado.

A FALSA ARTE, A NOSSA ARTE, A TOLA NOSSA PARTE

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A FALSA ARTE, A NOSSA ARTE, A TOLA NOSSA PARTE

Ivan de Almeida Junqueira
janeiro de 2013

Antigamente olhava na Fatos e Fotos ou na Manchete e lá via um mundo que tinha de aprender. Hoje vejo na mídia toda, mesmo nas fotos “artísticas”, mera repetição.

O enorme significado da fotografia de nossa vida, o pequeno significado das tantas vistas todo dia, antigamente raras visões do mundo, hoje uma repetição quase insuportável da mesma coisa.

Todo dia aqui na internet vejo muitas fotos, muitas delas formalmente propositivas, muitas delas obviamente boas em soluções gerais.

Mas todo dia vejo várias, de modo que elas vão se tornando esquecíveis. Uma fotografia, vista ela num mundo menos cheio de imagens, é recordável para sempre, marca nosso olhar… Mas tantas…

Vejo fotos em PB de lagos ou mares alisados pelo tempo de exposição, com alguns poucos elementos ali, de pedra, de alguma construção.

Vejo fotos de pessoas ou de ambientes, que um pouco notáveis são notáveis conforme a moda visual da atualidade. Aliás, essa é a expressão: há uma moda visual, não a moda mais comum da publicidade, mas a “moda da arte” que não passa de moda, que não é de fato algo que nos enrede, que nos retenha, que nos faça navegar por ela sempre que a olhamos. Não, não fazem isso, no máximo cumprem o papel de ocuparem o lugar da imagem contemporânea. “olha, sou contemporânea (a imagem), a proposta do meu fotógrafo é contemporânea”.

Ai, ai, ai, isso me cansa, confesso, porque vivemos um mundo-época em que tudo é contemporâneo, então o hoje proposto amanhã é apenas um nada, um registrozinho igual a tantos, um algo que por si não será capaz de aglutinar nossa percepção simbólica e estética como a arte quando boa faz, e não fará isso porque terá sido superada por outro modelo de época -talvez o escorrido seja então colorido e não PB e outros modismos assim tolos.

Sempre a arte teve uma moda, digamos assim. Mas o hoje só tem isso quase sempre. Vemos em um museu aquilo que foi proposto arte e aceito como tal na época ou quinze anos atrás, e ao vermos já não há ali substrato capaz de nos deslocar esteticamente, de nos capturar esteticamente e nos manter por minutos, por um tempo, enredados. Não vemos isso, vemos algo cara-crachá, algo que apenas cumpre um papel de momentos e depois torna-se cansativo, embora a arte em seu bom aspecto nunca se torne cansativa.

O mundo que agora não quer arte, quer parte, quer somente do lado de quem produz um tronozinho entre tantos, e, do lado de quem observa, produz-se uma cadeira no auditório, auditório que para ele tem lugares limitados e fazem dos ocupantes um reconhecido como pessoa esclarecida e de bom gosto.

Esse jogo é pobre. Pode não ser pobre ao sustentar alguém, trabalho não é arte, alguma coisa pode ser dita arte mas ser tão somente uma produção compatível com as necessidades de giro do mundo. Mas é um jogo pobre no sentido de libertador, porque, aí a questão, não lança ao espectador o lugar deslocado do lugar midiático, mas sim uma confirmação, uma glorificação da estética midiática.

Nosso mundo é dos raros mundos-momentos nos quais a vanguarda artística não é sequer combatida, ao contrário, é vista com a mais conservadora visão de consagração artística. Onde a vanguarda artística é vastamente “compreendida” pelas principais instituições artísticas, que na verdade fazem dessa vanguarda apenas uma diversão de baixa exigência para o observador que assim acha ser também uma personalidade de refinado critério artístico, quando não é mais do que público de uma parte da indústria cultural atual. A arte visual no hoje em dia é mais relativa ao Teatro do que à arte visual tradicional. Faz-se a peça, as pessoas as veem, e aí vamos ao entretenimento seguinte. Este é o processo atual.

Publicidade, vida social e fotografia

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Publicidade, vida social e fotografia.

texto de setembro de 2006, publicado no Ziguezague em junho de 2012

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Há algum tempo venho falando nos fóruns e listas sobre a estética publicitária. Cabem aqui alguns comentários sobre ela.

1) Do ponto de vista da dinâmica social, todo o conjunto chamado publicidade é essencial para manter a mais-repressão falada pelo Marcuse no livro A Ideologia da Sociedade Industrial e no Eros e Civilização. Provavelmente a publicidade é o ponto central nessa manutenção, pois ela impõe à sociedade novas necessidades incessantemente; sejam novos produtos, sejam produtos já existentes em níveis de aperfeiçoamento diferenciado, tantas vezes produtos descasados do uso efetivo, da utilidade efetiva, mas nisso desenhando um estilo de vida, por ela bom. Nesse ponto de vista, a publicidade é a corrente que prende nossos pés como indivíduos e que mantém toda a sociedade em uma cadeia de interações de natureza desumana e violenta perseguindo coisas que nem sequer são necessárias nem melhoram a vida em nada. Mantém os indivíduos perseguindo metas falsas e ilusórias. Luta-se, rouba-se, corrompe-se, morre-se de trabalhar, vive-se egoisticamente. Para quê? Apenas para poder ocupar lugar imaginário do consumidor, podendo ser de coisas ou de bens inefáveis como imagem, poder, etc.

2) Em um segundo nível, a publicidade pesca no desejo, aquela categoria insanável Freudiana. A falta, essa é a verdadeira matéria de trabalho da publicidade. Ela cultiva a falta, ela mantém-nos na falta, ela dá relevo à falta e até a inventa. Sem a falta não faríamos o que fazemos por bens. Como a falta verdadeira ou não há ou é da esfera do afeto, a publicidade gera falsas faltas para nos manter mobilizados. Nesse sentido, a publicidade é alienante, pois substitui a busca dos valores afetivos e pessoais por uma busca de idealizações descasadas de significado afetivo.

3) Do ponto de vista estético/simbólico, a publicidade opera um jogo de evocações. De evocações de personagens, de modelos, de formas de vida assépticas, perfeitas. Assim, a fotografia publicitária é antes de tudo uma fotografia anti-vida. Ela precisa recusar a vida, precisa recusar o caos cotidiano. Mesmo quando aborda o sofrimento ou condições ruins de vida, elas são reduzidas pela publicidade a clichês, na má condição de vida nada há de bom, na boa condição nada há de ruim, na cozinha não há desgaste das panelas, tudo é descarnado, isolado. A realidade é múltipla, a publicidade unidimensional

A fotografia publicitária exige antes de qualquer outra coisa o controle da luz. A característica da fotografia publicitária é a luz absurdamente controlada para produzir a idealização pretendida, geralmente com “tudo mostrado”, ausência de sombras profundas, etc.

Há não uma poética, mas há uma narrativa. Não cabe falar em poética, pois o que há é somente uma poética degradada, confirmativa. Não há, como na verdadeira poética, um deslocamento do universo de significados corriqueiros que transcende o hábito mental e remete o observador a outras esferas, e sim uma confirmação, o mais direta e plana possível, desses significados. Mas há uma narrativa. Estudando-se uma fotografia publicitária, vemos cada parte significando algo, a veste da mulher mostra seu tipo de vida, o tipo de copo mostra sofisticação, o etc. Há um jogo consciente de significados, mas não poética.

Quanto à interação da publicidade com a prática fotográfica, ela aparece principalmente no desejo que vemos em tantos fotógrafos de fotografarem “com cara de anúncio” mesmo em fotografias não de anúncio. Há falta de treinamento artístico, de formação humana, que é nessa sociedade de massas apenas um luxo, e quando há cultura é em geral uma cultura pret-a-porter, uma cultura de espetáculo transformada em produto de lazer, faz de uma grande massa de fotógrafos repetidores dos clichês publicitários e mesmo incapazes de julgar uma fotografia que fuja deles. Na falta de outras referências estéticas, as idealizações da publicidade tornam-se uma espécie de vida mental que se reproduz nas fotografias dos que nela estão embebidos, então o fotógrafo amador pensa serem boas as suas fotos quando parecem fotos publicitárias, e não busca outra narrativa, outra visão pessoal, mas somente repetir a louvação por imagens dos produtos, sejam coisas ou firmas de vida.

Em todos os sentidos, a fotografia publicitária é uma espécie de violência, pois a captura de corações e mentes não pode ter outro nome. É um seqüestro mental, digamos assim.

Nada contra a habilidade fotográfica de fazer assim, nada contra trabalhar fazendo -pois os trabalhos existem na dinâmica social, sempre- nem ninguém, nem eu, está a salvo de gostar de uma ou outra solução. Mas o conjunto operativo da publicidade deve ser visto como é de fato: como uma prisão .

O Paradoxo da Fotografia Digital em Preto e Branco Parte 2 – A manipulação das cores na Fotografia Digital em Preto e Branco

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O Paradoxo da Fotografia Digital em Preto e Branco
Parte 2 – A manipulação das cores na Fotografia Digital em Preto e Branco

Cada um segundo sua natureza.

Este artigo é uma continuidade do assunto iniciado no artigo O Paradoxo da Fotografia Digital em Preto e Branco, publicado neste blog em novembro de 2010. Pretendia publicar esta contunuação logo depois do outro, porém um blog como esse depende muito de nossos impulsos e vontades momentâneas, de modo que essa continuação acontece quase ano e meio depois do início. Penso ser bastante útil ler a primeira parte, embora o atual artigo tenha certa capacidade de se sustentar sozinho, pois a primeira parte oferece um suporte conceitual e indica uma tendência de interpretação do fenômeno da fotografia em PB digital. parqa ler a primeira parte, clique AQUI.

A primeira parte do artigo sobre fotografia em preto e branco por processo digital terminou com proposta de uma classificação de três atitudes definidoras da abordagem relativa à fotografia PB digital: MIMÉTICA, DESENVOLVIMENTO E NOVOS RUMOS, e foi feita uma indicação sumária quanto ao significado dessa classificação. O presente artigo falará dessas atitudes, dando ênfase às novas possibilidades decorrentes da manipulação das cores como parte do processo de desenvolvimento da fotografia em PB. Ainda que possa inicialmente parecer estranho, isso acrescenta novas possibilidades de desenvolvimento que são tipicamente digitais.

Toda classificação falhará em algum uso, e aqui não se tem a ilusão dessa nossa ser isenta de falhas, e nem sequer de ser possível classificar cada fotografia precisamente em uma das categorias sem isso ser coloca-la em um Leito de Procusto. Tomamos como certo que nenhuma fotografia caberá perfeitamente ajustada em uma dessas categorias, mas ainda assim precisamos usar categorias para falarmos do assunto, para desdobra-lo mostrando diferenças entre as abordagens, mesmo sabendo que no mundo real uma foto real será o resultado de uma mistura dessas atitudes e apenas se poderá dizer haver uma delas dominante.

Então, a primeira coisa a fazer é alertar o leitor para a necessidade de entender essas categorias de forma flexível, considerando-as apenas o suficiente para elas nos ajudarem a examinar o assunto mas sem toma-las como restritivas ou definidoras de forma cabal. Tomando-as rigidamente, logo esbarraremos em seus limites e ficaremos presos em um jogo de contradições e incoerências – inafastáveis – sem aproveitarmos o entendimento geral das possibilidades que elas ajudam a delimitar.

Antes de passarmos às categorizações, é preciso lembrar o artigo anterior quando reconhece ser a fotografia em PB digital a continuidade de uma tradição, isto é, ser continuidade de um processo histórico no qual o passado da atividade –constituído das inúmeras e excelentes fotografias feitas em filme- permanece como referência (referência não é prisão), não para ser copiado, mas porque no estoque de fotografias em PB feitas em película houve o desenvolvimento de uma estética e de uma e isso constituiu nossa cultura visual e esse é o solo para o plantio de novas plantas.

1) A MIMÉTICA

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Talvez seja a primeira atitude na abordagem da fotografia digital em PB, principalmente para quem vinha de uma experiência anterior com filmes (experiência cada vez mais rara atualmente). O fotógrafo acostumado ao filme deseja, inicialmente, fazer algo semelhante ao que está acostumado, e ao tentar fazer descobre serem bastante diferentes os dois meios: eles respondem diferentemente aos contrastes. Então se lança à procura de soluções prontas, soluções que reproduzam o aspecto da fotografia tradicional de película através do meio digital. Esses fotógrafos de transição têm a seu favor uma memória visual à qual referenciar-se –eles sabem como são as fotos em PB “de verdade”-, e contra si, muitas vezes, mas nem sempre, uma ojeriza ao processo digital que os afasta do entendimento necessário ao desenvolvimento maior de suas fotografias. O resultado pode ser uma insatisfação constante com o processo digital, uma louvação do passado do filme por vezes em tom queixoso, pois comparam seus resultados digitais, baseados em um afastamento tecnológico, com os resultados de uma prática em que se envolveram muito com a tecnologia.

Além desses, há hoje uma maioria de fotógrafos sem qualquer experiência com película PB. Eles também desejam fazer fotografia em PB, mas não tendo a referência de uma memória para lhes orientar, e sendo a fotografia digital por natureza aberta e determinada em grande parte pelas escolhas do tratamento/conversão, mostram grande desorientação quanto ao aspecto final da fotografia a ser buscado. Tal coisa poderia ser suprida pelo treinamento em análise de imagens, treinamento esse onde o fotógrafo aprendesse a distinguir nas fotos a forma como os cinzas e os contrastes acontecem nas fotografias feitas em filme PB, mas esse treinamento analítico é raro, é indisponível como conjunto organizado de informações, e a grande maioria resistiria em adquiri-lo por considerá-lo inefável (chamam-no de “subjetivo”, de “questão de gosto”, etc). De modo geral os fotógrafos resistem ao desenvolvimento analítico de sua prática, e não apenas nesse particular. Parecem acreditar que a análise desencanta a imagem, quando acontece exatamente o contrário.

Mimética 2 - Pluguin Topaz TriX

Uns e outros, experientes em PB e inexperientes, passam a buscar as soluções prontas, plugins, actions, ferramentas prontas –soluções que substituem a análise tonal e o artesanato de preparação de cada foto. Uns porque não conhecem a tecnologia digital suficientemente, outros por falta de referência. Para esses últimos, os plugins simplesmente representam uma resposta à sua desorientação. Usa-se um plugin e pronto, o resultado, supõem-no coerente com a linguagem de PB. Essas ferramentas são muito interessantes, por vezes, com resultados bastante convincentes no sentido da simulação, embora por vezes o resultado tenha certo aspecto de caricatura, de exagero. Mas, sem dúvida, trazem a estética característica dos filmes PB de forma relativamente fácil, tornando-a acessível a muitos. É claro que não funcionam convincentemente sempre.

A MIMÉTICA é a intenção clara desses procedimentos. A foto abaixo foi tratada usando a versão Trial do TOPAZ BW Effects, um pacote de simulação de filmes, PB ou coloridos, usando a opção TriX 400.

Essa atitude mimética pode ser perseguida de forma mais sofisticada, quando menos desnorteada, através do uso de conversões do RAW com sets específicos para PB, ou trabalhar cada foto com filtragem de cores usando ferramentas como o Channel Mixer do Photoshop.

Buscar essa mimética oferece algumas dificuldades em face à peculiar forma de transcrição das luzes no filme PB, quase antagônica àquela da captura digital. A fotografia digital tende a conter demasiados cinzas médios com pouco contraste entre eles. Ela contém mais resolução e menos acutância devido a isso, e, por isso, a simples

abordagem de filtragem de cor nunca é suficiente, sendo necessária a adaptação da curva de contraste geral, grosso modo criando um “ombro” entre as altas luzes e as luzes médias e aumentando a declividade das luzes médias. Mas não existe fórmula única porque simplesmente o filme responde diferentemente do sensor digital. Cada foto precisa de uma preparação diferente. Além disso, os contrastes de vizinhança do filme são muito carcterísticos. Não basta resolver o contraste geral, o filme desenha diferentemente o objeto.

O esforço de mimética pode chegar ao ponto de ser acrescentada à foto digital defeitos típicos do filme como sua granulação, e alguns plugins chegam mesmo a acrescentar arranhados de negativo. A busca de reprodução da aparência do filme faz ser introduzido ruído monocromático simulando a granulação típica dos filmes rápidos ou puxados. E, de fato, essa simulação tem o condão de aproximar o resultado por aumentar os contrastes localizados da fotografia digital, dando impressão de aumento de acutância.

2) DESENVOLVIMENTO COM VARIAÇÕES POR REGIÃO DA FOTO (DODGE&BURN DIGITAL)

Desenvolvimento é a forma como os americanos e outros sempre chamaram a revelação de fotografias e a produção de cópias. A diferença entre as palavras usadas por nós e por eles – a nossa “revelação”, o “desenvolvimento” deles – não é inócua, ao contrário, pois as palavras são indutoras de atitudes. A nossa “revelação” conduz pensar o procedimento como neutro, apenas tornar visível aquilo já determinado na captura (aliás, a palavra “captura” vive no outro lado da moeda “revelação”, há um binômio captura-revelação na qual a revelação é pensada como passiva, ou quase). Já a palavra desenvolvimento subentende atividade criadora continuada, a criação acontecendo tanto no tratamento quanto no disparo.

Durante o longo período em que se usou película, o desenvolvimento das fotografias foi crucial para a obtenção de seu aspecto, para a definição da mensagem, para a dramatização dessa mensagem. Indo desde escolhas planas (isto é, escolhas afetando toda a fotografia) como é a escolha do papel, dos químicos, do filme, dos tempos de revelação e da temperatura dos líquidos, escolhas essas afetando a fotografia quanto a contrastes, intensidade, contrastes de vizinhança, resolução, etc, até escolhas não-planas onde, através de máscaras na feitura da cópia, conseguia-se modificar o balanço dos contrastes e tons entre os elementos da foto.

Ora, junto com a angústia quanto à definição de uma fotografia digital, por ser demasiadamente aberta às escolhas de tratamento como é, veio também a capacidade de se realizar trabalho semelhante ao de laboratoristas exímios usando programas gráficos e computadores domésticos. Livres do medo da ação definitiva, aquela irreversível e monetariamente custosa,  cada fotógrafo pode experimentar, voltar atrás, intensificar, atenuar, manter todas as suas intervenções em uma fotografia em suspenso enquanto busca o melhor balanço delas em função da mensagem visual e simbólica de uma imagem sua.

Dessa maneira, aquilo aqui chamado de desenvolvimento não é algo novo em essência. Mas é algo novo em disponibilidade prática, contudo. Desenvolvimento é usar as facilidades da imagem digital ou digitalizada e usar os programas gráficos para intervir na fotografia, em áreas específicas dela, usando máscaras, buscando em cada parte sua melhor representação. Com os recursos dos programas gráficos isso pode ser feito de forma muito refinada a um custo baixo comparativamente, e o resultado propagar-se-á para todas as cópias feitas, e não a apenas para uma cópia como na fotografia química. Não é uma atitude nova, mas é uma possibilidade nova no grau em que pode ser praticada.

3) NOVAS POSSIBILIDADES A PARTIR DA MANIPULAÇÃO DAS CORES NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO DA FOTOGRAFIA EM PB

Começamos o primeiro artigo falando de um paradoxo, qual seja, o de se buscar fazer fotografia em PB através de um processo onde a captura já nasce colorida. Pela nossa abordagem inicial, mostramos isso sendo contraditório, até certo ponto, com a intenção de fazer um PB. Contudo, posteriormente, tentamos indicar ser a aparência final de uma imagem digital irremediavelmente determinada por escolhas, e assim a escolha pelo Preto e Branco não é mais nem menos válida do que qualquer outra.

Dupla filtragem, vermelho/amarelo. O azul do céu foi filtrado em vermelho, escurecendo, e o restante da foto em amarelo ganhando legibilidade e detalhe.

Mas aí surge algo diferente, algo que provém do fato da imagem ser primariamente colorida. Surge um universo de novas abordagens de tratamento (desenvolvimento) que só são possíveis a partir da imagem ser colorida e dela ser digital. Este trecho deste artigo não pretende fazer disso uma abordagem extensiva, pois há infinitas formas de lidar com o assunto. Contentar-me-ei em exemplificar algumas das abordagens possíveis a partir das cores do arquivo primário.

Por exemplo: Tomemos um arquivo colorido qualquer. Vamos torná-lo PB usando uma das ferramentas mais comuns, o Channel Mixer do Photoshop. Usando essa ferramenta, observamos ela nos disponibilizar vários pontos de partida correspondentes às filtragens da imagem por um filtro qualquer de cor. Podemos filtrar com azul, verde, laranja, vermelho, amarelo ou combinando em doses quaisquer as cores. Fazendo isso, é bastante fácil verificar que os contrastes locais são modificados a cada escolha. Pegando uma fotografia de vegetação, essa fica mais clara usando uma filtragem verde, enquanto o céu fica mais escuro usando uma filtragem vermelha, e assim vai. Como regra geral, a cor complementar ao filtro escurece e a cor próxima a do filtro torna-se mais clara.

Tradicionalmente os filtros coloridos foram usados em filmes PB para produzirem fotografias de um tipo ou de outro. O uso do filtro vermelho não somente aumenta o contraste, mas escurece tudo aquilo que é verde, sua cor complementar, clareando, por outro lado, os tons avermelhados. O uso do filtro verde tem efeito oposto. Porém, como tais opções eram feitas no disparo, elas marcavam definitivamente a fotografia de forma plana, isto é, marcavam toda a fotografia. A escolha feita no disparo tornava-se definitiva para a fotografia, incrustava-se no negativo afetando todas as suas partes.

Ora, agora essa filtragem não é mais feita no disparo, e sim sobre um material –o arquivo digital- que contém as cores e que será modificado pela filtragem. Então, pela primeira vez, uma fotografia pode sofrer um desenvolvimento diferenciado de filtragem em relação aos seus elementos, desenvolvimento que afete apenas uma região cromática dela e não ela toda. Digamos que em uma paisagem o céu seja filtrado em vermelho mas o mato em verde em certos locais, de modo a neles termos desenhos de folhagem. E nessa paisagem um barranco de terra alaranjada seja filtrado em azul para aguçar seu contraste e escurecê-lo. O céu escurecerá como se houvesse polarização, o mato se tornará cheio de desenhos e detalhes, o barranco escurecerá e ficará cheio de contraste. O resultado disso, em PB, poderá ser perfeitamente convincente ao observador, que ignorará essa filtragem localizada, mas será tal que outra forma de fazer não produziria, nem mesmo o dodge&burn localizado.

Ora, através de meios de tratamento que são inerentemente dependentes da natureza digital da fotografia, e, mais ainda, do fato dessa nascer colorida, passamos a dispor de formas de desenvolvimento da imagem em PB que não eram disponíveis (não eram impossíveis completamente, mas não eram também relatados como prática de desenvolvimento) na fotografia em película. Passamos aqui de uma inicial contradição entre a fotografia tradicional em PB e a característica colorida da captura digital para depois termos aproveitamento disso para a obtenção de algo que não poderia nascer da captura em PB simples.

Há inúmeras possibilidades novas fazendo um desenvolvimento prévio das cores antes de convertê-las para PB, através de diversas ferramentas como, por exemplo, ferramentas de saturação. O esquema de filtragem com Channel Mixer é apenas uma exemplificação de que a natureza inerentemente colorida pode propiciar desenvolvimentos novos em PB, mas de forma mais simples se pode mexer na saturação e Hue de cada cor da imagem antes da conversão filtrada, tendo em mente a interação do filtro com a cor transoformada. Basta pensar na complementaridade das cores e deslocar, cada Hue de cada cor para mais perto ou mais longe da complementaridade, ou intensificá-la com saturação, para mudar a forma como aquela região de cor aparecerá no PB..

Ou podemos, ainda, mexer diretamente nos canais primários das cores durante a conversão do RAW, obtendo efeitos a partir daí. O potencial disso é facilmente observável quando colocamos a saturação em zero e mudamos o white balance no conversor de RAW. Nota-se que a fotografia muda em tons e contrastes só com a mudança no WB, mesmo a saída sendo em PB.

Mesmo assim não se deve imaginar estarmos inventando uma nova estética em PB. No fundo, com novos métodos e novas possibilidades, é ainda na estética consolidada que se terá referência para os resultados a serem perseguidos. Os resultados serão julgados bons ou não conforme eles se relacionem com a tradição da linguagem PB – sempre serão uma mimética em termos de linguagem-, mas na verdade a ultrapassarão.

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Temos de considerar que o modo digital de fotografar não existe apenas pela criação das câmeras digitais. Essas são um dos elementos de um arcabouço tecnológico de nossa época, um arcabouço maior que constitui um sistema de codificação e comunicação de informações. Independentemente da forma de registro de uma imagem, em filme ou digital, não é imprudente dizer que em algum momento aquela imagem tornar-se-á digital para circular no espaço informacional de nossa época.

Evidentemente a fotografia tradicional em PB continuará existindo por muito tempo, não havendo horizonte para seu fim. Mas tornar-se-á um caso particular da criação fotográfica, não será mais capaz de definir uma estética. Aos poucos, a estética em PB vai tornar-se transicional, vai deslizar para as criações estéticas feitas a partir da tecnologia digital e isso será o seguimento da tradição da fotografia em PB. Uma tradição não é apenas o passado, mas constrói-se com novos eventos que sejam reconhecidos como válidos dentro dela. Não será mais a fotografia feita por métodos tradicionais que comandará a definição da estética, embora o estoque de fotografias feitas no passado, esse sim balizará os desenvolvimentos que serão aceitos como parte da tradição. Como tratamento a manipulação de cores na fotografia digital possibilita refinar as narrativas da fotografia em PB de uma maneira nova e inesperada, embora quando bem feita invisível por natural.

A palavra tradição denota algo que se transporta, ou seja, algo que vai sendo transportado através do tempo, mas bem entendida, a palavra subentende também mudanças através do tempo, mudanças tais que não reneguem as origens, mas que apontem para possibilidades novas, novas formas de fazer, e para uma mudança estética a partir das novas possibilidades, embora, por certo ponto de vista, essa mudança sempre será continuidade.

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Desenvolvimento (tratamento) e Interpretação da Imagem Fotográfica.

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Desenvolvimento (tratamento) e Interpretação da Imagem Fotográfica.

“Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve” disse o gato do sorriso – Alice no País das Maravilhas, Lewis Carroll

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Há alguns meses quero escrever esse artigo. Li num fórum de fotografia um fotógrafo escrever, em um tom no qual não faltava uma pitada de ironia, que “ainda precisava aprender fotografia, porque não atinava sobre o que fosse a leitura de uma foto”. Não foi exatamente nesses termos, mas algo parecido.

A forma como a pessoa coloca a questão dá a impressão que a  interpretação de uma imagem, ou seja, sua leitura ou o entendimento de como é construída a mensagem e de qual é a mensagem não é mais que um passatempo esnobe. Que não é algo ligado de fato à fotografia, mas mera exibição de erudição, alheia ao processo “intuitivo” de fotografar.

Ora, essa maneira de ver implicita a defesa de uma fotografia feita sem pensamento, sem consciência do jogo de significados contidos numa imagem, como se esse jogo surgisse espontaneamente a partir de uma fotografia bem feita –talvez tecnicamente bem feita, pois as pessoas, mesmo aquelas defensoras da intuição, ao fotografar reconhecem a necessidade de aprender técnica fotográfica.

Na mesma mensagem lida,  o autor diz que não vê para que deva praticar ou desenvolver uma capacidade de leitura da imagem fotográfica. Bem, creio ser isso um grande engano, pois a fotografia não é uma miniaturização (ou macrificação) do mundo em suas realidades plenas, e sim uma forma de comunicação de idéias –idéias capazes de serem expressadas visualmente– e essas idéias, embora sejam articuladas visualmente, obedecem a uma espécie de sintaxe. Essa sintaxe consiste numa disposição particular dos objetos retratados dentro do retângulo fotográfico de forma a eles transmitirem uma idéia ao observador, idéia essa cuja descrição verbal pode nunca tornar-se consciente para ele, mas nem por isso deixa de impressioná-lo.

Ora, podemos imaginar uma experiência simples. Imaginemos termos três figuras recortadas. Um cão, um gato, um rato. Imaginemos agora uma folha de papel e vamos dispor essas três figuras na folha de papel. Conforme a posição das figuras, a mensagem visual muda. Podemos colocar, em uma linha, na frente o rato, no meio o gato, atrás o cão. O observador tenderá a interpretar “O gato persegue o rato e o cachorro persegue o gato”. Porém, se colocarmos numa ponta o cachorro e atrás dele o rato, e na outra ponta o gato olhando para eles, o observador é levado a pensar algo como “o rato se esconde atrás do cachorro para o gato não pegá-lo”. Assim, com os mesmos três símbolos visuais, podemos construir mensagens diferentes dependendo da sintaxe visual que os une. A prevalência da interpretação pode ser facilmente demonstrada por pesquisa, nos moldes daquilo mostrado neste blog no artigo “Composição Geométrica e Significado na Fotografia e nas Artes Visuais” .  Esse tipo de abordagem experimental permite mostrar haver interpretações de mensagens visuais que são prevalecentes, isto é, fazem parte do fundo intersubjetivo que permite a comuniação das mensagens visuais e de outras.

Ora, quando fotografamos, nós, através de escolhas como ângulo de tomada, comprimento focal, profundidade de campo, iluminação, exposição, construímos uma mensagem visual articulada por uma sintaxe, e conforme essas escolhas o resultado significará coisas distintas para o observador. Quanto mais o fotógrafo for consciente da mensagem, e, principalmente, dos elementos na fotografia que a constroem ou a reforçam, tanto mais ele pode articular isso na tomada da foto ou no tratamento.

É preciso, porém, dizer ser o assunto fácil de entender em linhas gerais quando falamos de cão, gato e rato, mas não tão fácil quando falamos de fotografia. Porque na fotografia os símbolos não são assim tão explícitos, não são de significados tão diretos. E uma fotografia é, em geral, mais complexa do que os esquemas-exemplo.

Além disso, a mensagem intentada pelo fotógrafo pode ser puramente visual-táctil, sem correspondente simbólico tão forte. O fotógrafo pode querer mostrar formas. As formas também são, em certo grau, simbólicas, elas sugerem interpretações e significados, mas isso é ainda menos palpável e necessita mais aprofundamento para ser entendido suficientemente.

Ao longo dos anos, convivendo com comunidades de fotógrafos, noto ser a questão do tratamento de imagens uma questão relativamente opaca para muitos. A razão disso é a maioria ter uma visão do assunto onde o ato da tomada da fotografia é separado e incomunicável com o tratamento. Toma-se a fotografia como um ato isolado e fechado em si mesmo, e após, sentado no computador, o fotógrafo olha aquele arquivo querendo “embelezá-lo” para mostrá-lo na rede aos companheiros de interesse. Esse embelezamento na maioria das vezes não possui um critério oriundo da própria fotografia. Ele é como uma camada postiça de açúcar colorido que se coloca em cima do bolo de aniversário (glacê). Assim, nessa etapa, quando a atitude é essa, são buscadas fórmulas prontas, plugins, modelos, reproduzir coisas que estão na moda ou foram vistas recentemente. E isto é aposto à fotografia sem razão alguma ligada à própria fotografia. “Vou passar para PB”. Por quê?  Por que razão a mensagem melhorará em PB?.

Ora, quando a fotografia em si tem uma mensagem visual suficiente, esse embelezamento supre a demanda. Fotógrafos mais experientes costumam obter fotografias com boa articulação interna, de modo a esse recobrimento embelezador suprir grande parte das necessidades. Poderíamos dizer, nesses casos, ter havido, por sedimentação de experiência,  uma adequação entre tomada e desenvolvimento da fotografia, isso se expressando por preferências do fotógrafo, mesmo ele não sendo consciente da ligação entre o tratamento e o aguçamento da mensagem fotográfica. A experiência, pura e simples, não meditada, aperfeiçoa a prática, embora em modo restrito e sem muita plasticidade.

A palavra aguçamento é muito boa para seguirmos. Podemos postular, para seguimento deste artigo, ser o tratamento (desenvolvimento) de uma fotografia um processo de aguçamento da mensagem nela contida. O fotógrafo faz uma tomada na qual certas coisas o interessam, e depois, no desenvolvimento, torna tais coisas mais evidentes ao observador. Esse tipo de tratamento é profundamente diferente daquele realizado sob a mera idéia do embelezamento. Nesse, não apenas o embelezamento é perseguido, mas também uma clarificação da mensagem. Não apenas a imagem toda deve ganhar visibilidade melhorada, mas a melhoria da visibilidade deve ser de tal tipo que aumente a força dos elementos da mensagem visual concebida pelo fotógrafo.

Ora, é muito simples perceber isso necessitar de uma prévia compreensão (leitura de sua própria fotografia), pelo fotógrafo, compreensão de qual é a mensagem visual da fotografia e de que elementos ela depende. Porque é essa compreensão que orientará o tratamento, que permitirá escolher entre dois caminhos, que permitirá entender quando algo precisa de mais ou menos contraste, quando outro algo precisa de tratamento localizado, quando os tons devem ser abaixados ou elevados. Esse entendimento permite ao fotógrafo lidar com a mensagem visual aperfeiçoando sua comunicabilidade. Sem esse entendimento o tratamento não corresponderá à mensagem visual a não ser por acaso.

Evidentemente, o desenvolvimento não é uma etapa na qual o fotógrafo apenas aguca aquilo previsto na tomada. Ao olhar a foto na tela, surgem oportunidades, são identificados elementos interessantes não totalmente previstos, e o fotógrafo então deve avaliar o quanto tais elementos podem melhorar a mensagem visual ou podem modificá-la para melhor. Ora, isso não significa menos leitura da imagem, mas, ao contrário, um segundo e mais aperfeiçoado nível de leitura, um segundo nível de reforçamento. Significa também ser o desenvolvimento uma etapa criativa que não apenas amplia o já imaginado na tomada, mas é também construtora.

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Esse artigo é ilustrado por duas fotografias (além do gráfico). Foram fotografias tomadas pela janela da minha casa. Chovia muito, e carros entrando por uma agulha de troca de pistas levantavam água como uma lancha no mar. Aquilo me interessou, e como tenho prática antiga de fazer pannings pela janela, montei a lente na câmera e me pus a fotografar os carros espargindo água. Bastante acostumado com pannings pela janela –que sempre prefiro fazer ao anoitecer- sabia os efeitos das luzes dos carros com suas cores (em um contexto com vários tipos de iluminação, conforme escolhemos uma como tom-referência as demais tornam-se luzes coloridas). Esse, então, foi o “projeto básico” das fotos. Enquadramento, captura do esguicho produzido pelos pneus, luzes coloridas. Há nesse projeto uma sintaxe esboçada, ele já implicita uma leitura posterior desses elementos como principais do conjunto. Naturalmente, o desenvolvimento procurou enfatizá-los. Não somente embelezar as fotos, mas dar ênfase a esses elementos, em cada foto maximizando as oportuindades por ela oferecidas. Foram feitos tratamentos localizados, especialmente na região do esguicho e do farol,  foi feito sharp localizado, saturações localizadas,  modificações de cores específicas as reforçando ou mudando o hue.  Os elementos, o farol dos carros, o esguicho, o contexto, cada uma dessas coisas recebeu o tratamento julgado necessário para ter a ênfase necessária na imagem.

Tratamento de imagem é um processo de enfatizar, de aguçar a mensagem visual, não apenas de embelezar a fotografia ou dar a ela um aspecto da moda do momento. Isso não pode ser feito sem o fotógrafo ter desenvolvido uma capacidade de leitura da mensagem visual na qual compreenda o que cada parte da imagem significa e o que ela faz na sua relação com as demais, na qual compreenda a importância relativa das coisas figuradas na fotografia. Não é possível ênfase sem se saber aquilo que precisa ser enfatizado. Por vezes é uma cor, por vezes é uma forma, por vezes é um contraste. Mas não é tão somente embelezamento, é definição de mensagem visual.

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Mentir, para contar a verdade

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Mentir, para contar a verdade

Si no è vero, è ben trovato (provérbio italiano)

Terminei de almoçar no restaurante Don Salmón, em Ensenada, localidade próxima ao Vulcão Osorno. O terreno do restaurante termina em uma praia feiosa de um lago muito bonito, tendo como fundo a silhueta do vulcão. Entre o restaurante a a praia, freqüentada nesse dia por banhistas recatados e famílias, um espaço confuso de areia cinza escura e uma feia construção, aparentemente um depósito. No meio disso tudo um monte de lenha arrumada, com suas tonalidades alegres de madeira. Deixara a família experimentando sobremesas para tentar, ali, uma ou duas fotografias.

Meu olhar procurou, procurou, mas o entorno, apesar do lago e do vulcão, ere feio e cinzento. Aproximei-me, então, do monte de lenha, fechei o diafragma além de f/16 para garantir grande Profundidade de Campo e fiz o enquadramento da  fotografia acima, só a lenha com seus tons amarelos-vermelhos e o vulcão.

Olhamos a foto pronta e associamos a neve e a lenha, e sabemos de pronto que é uma região fria e com vegetação de clima temperado. A fotografia nos informa sobre o ambiente de uma região, sem que essa região figure nela. A fotografia nos faz imaginar a natureza de lá como ela de fato é, evocando em nós lembranças complementares de ambientes vistos pessoalmente ou em outras fotografias vistas, nos faz evocar a vegetação mais áspera que a de cá, as paisagens.

No entanto, aquilo realmente. fotografado foi um monte de lenha com o vulcão ao fundo, nos fundos feios de um restaurante.

O que essa fotografia diz a quem não sabe disso, e mesmo para quem sabe, é mentira ou é verdade? A resposta é impossível, mas uma das muitas respostas possíveis é ter sido dita a verdade através de uma mentira, posto que o ato fotográfico sim si foi completa construção de narrativa, foi recortar de tal forma a “realidade” (seja lá o que essa palavra significa) que é impossível não notar a artificialidade deste recorte em relação à experiência de estar no local, quando sabemos como a foto foi feita, mas é igualmente difícil imaginá-la só por ver a fotografia. Contudo, a mensagem da fotografia é verdadeira. De fato lá é frio, de fato queima-se lenha nas lareiras, de fato a região tem esse tipo de rusticidade evocada e de fato há a onipresença do vulcão.

Tal construção da imagem não corresponde muito à crença corriqueira relativa ao realismo fotográfico. Lembra mais a ilustração, como aquelas produzidas por desenhistas em tribunais, nos julgamentos onde são proibidas fotografias. Nelas figura o rosto indicando culpa do acusado, a atenção do juiz e do júri, a expressividade de gestos do promotor. Essa ilustração não se refere a instante nenhum acontecido, mas a uma impressão do ambiente e do desenrolar do julgamento, sendo um relato do acontecimento muito mais pertinente do que um hipotético instantâneo fotográfico capturado ao acaso no qual os membros do júri mostrem sono, o promotor esteja ajeitando a gravata, o acusado indiferente.

Ora, podemos certamente dizer que tal instantâneo fotográfico corresponde a um instante de fato ocorrido, ou não ficaria registrado. E podemos dizer que o conjunto da ilustração desenhada nunca ocorreu. Contudo ambos transmitem mensagens e a ilustração pode dar idéia melhor do que ocorreu no tribunal do que o instantâneo fotográfico neutro hipotético. O instantâneo, verdadeiro sob o conceito daquela configuração ter de fato ocorrido, pode ser mais falso que a narrativa da ilustração, cuja conjuntura nunca ocorreu.

Provavelmente a maior falsidade da fotografia provém do isolamento, do recorte do assunto em relação ao ambiente. O mero recorte já é falso e isso é agravado pelos efeitos do achatamento ou da inclusão excessiva promovidas pelos comprimentos focais de tele ou grande angular.

Essa escolha entre aquilo que será fotografado e aquilo que não será, essa escolha de como algo será figurado, perto ou longe, achatado por uma tele ou profundo, iluminado ou escuro devido à exposição, juntado ou não a outro elemento pelo ângulo, essa escolha cria o sentido, a mensagem da imagem produzida.

Há algo muito artificial nisso, conquanto tornado hábito não seja sequer percebido por muitos fotógrafos, que acreditam estarem tão simplesmente registrando o mundo como é. E, raramente é percebido pelo observador. Esse compra a mensagem da narrativa reforçada pela mitologia da fotografia-verdade.

Essa artificialidade, essa desnaturação é a mentira da qual nos valemos para contar algo ao observador, a esse alguém a quem é negado o conhecimento das circunstâncias da fotografia. Mentimos, mesmo que para contar uma verdade irregistrável por uma hipotética captura neutra.

Conversa com um amigo: O tratamento em fotografia digital

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Conversa com um amigo: O tratamento em fotografia digital

 

“Assim é, se lhe parece” – Luigi Pirandello

 

Um amigo cometou a foto que ilustra esse artigo dizendo, não se razão, que lhe incomodava um pouco um excesso de cores. Disse, embora por delicadeza ressalvando que minhas fotos não iam tão longe:

Já vi um mundo de fotos na internet em que a manipulação por software é tão exagerada que tenho a impressão que o sujeito mobiliza suas emoções muito mais neste ato de manipualção do que no momento de fotografar. Assim, o tema passa a ser tão somente um pretexto e o produto – a foto -perde quase que totalmente o contato com ele. O mundo destes “fotógrafos” é, assim, cada vez mais o mundo digital. Isto me incomoda muito pois sem querer, obviamente, que a fotografia seja uma cópia do real, não vejo sentido em algo cada vez mais distanciado da realidade.”

Respondi, e trancrevo abaixo a resposta, abrindo aqui uma conversa com quem quiser dela participar:

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Obrigado pelo comentário, franco e delicado ao mesmo tempo. Vou lhe dar meu ponto de vista, o ponto de vista que norteia meu processo de criação, e, aliás, hoje mais tarde pretendia escrever um artigo para o blog sobre isso, de modo que a conversa ajuda.

Começo dizendo que há várias fotos, ou melhor, várias finalidades para as fotos. Uma das finalidades é postar na rede, outra fazer algo mais elaborado imprimindo em papel,por exemplo. A imensa maioria das fotos mostradas tem por objetivo serem postadas na rede. Deixemos isso dito guardado para daqui a pouco.

A segunda questão é que as fotos digitais são profundamente diferentes das fotos em filme. A foto feita com filme aproveita a curva de contraste dele, que já é uma curva desenhada, e aproveita as cores dele, que são típicas de cada filme. Muitos dos filmes possuem cores extravagantes mas são considerados bons filmes. Um exemplo é o Kodachrome, o clássico filme reversível cujos contrastes, os pretos, etc, aproximam-se bastante até das cores que uso às vezes. Outro é o Provia, contrastado, azulado, seco. Mesmo os filmes não reversíveis (negativo colorido) são bastante característicos: o ProImage da Kodak tem cores meio douradas, alguns Agfa vermelhos intensos. No caso dos filmes em  Preto e Branco, de onde vem a fama do Tri-X Kodak a não ser de sua curva de contraste completamente dramática e anti-natural?

Bem, o fotógrafo ao usar a película conta, mesmo sem admitir, com certa desnaturalização da representação, e a fotografia em Preto e Branco é em si uma enorme desnaturalização.

Ora, a fotografia digital é oposta. Ao invés de contrastes rápidos, tem contrastes lentos. Na verdade a fotografia digital é um enorme aglomerado de meio tons relativamente sem graça. Além disso, a fotografia digital não nasce pronta desde sempre pela revelação, ela é sempre feita. Pode ser feita pelo software da câmera, pode ser feita de outro modo ao converter o arquivo RAW de forma personalizada, mas é sempre feita. Na câmera, por prudência dos programadores, ela é feita menos aguda porque isso evita certos problemas decorrentes da captura que o leigo não saberia corrigir nem evitar, problemas que exigiriam um ajuste específico de cada foto, impossível pelo software. Desarte, nossa atitude em relação a ela não pode ser a mesma que a atitude em relação ao filme, é preciso, sim, como dito por você, ter certo amor à etapa de tratamento. Essa etapa de tratamento cresce bastante em relação à etapa de exposição. Nessa etapa de tratamento é que se tenta tranformar aquela sopa sem graça de meios tons em algo que tenha contraste cortado.

O David Hockney, artista plástico e estudioso da arte, disse que a fotografia de nossa época não tem mais a idéia de realismo nela embutida, e que é cada vez mais semelhante à pintura. O tratamento de uma foto, ou, usando o termo americano, o desenvolvimento de uma foto é um processo mais parecido com desenhar do que com qualquer outra coisa. Nele vamos buscando certas ênfases, vamos enfatizando coisas. mesmo na fotografia em filme isso acontecia, o Ansel Adams fazia isso sempre. Ele tem uma frase em que fala disso cabalmente:

“Dodging e burning são passos necessários para cuidarmos dos erros que Deus cometeu ao estabelecer os relacionamentos tonais.“ A. Adams.

No meu caso, gosto tanto de fotografar quanto de tratar, ambas as coisas me agradam. Ao fotografar tudo é uma busca de exatidão. Não por acaso, não corto (cropo) fotos, elas são o frame capturado integralmente, e, nesse caso do quadrado, são o frame que sobra da fita isolante, isto é: cortei como vi ao fazer a foto porque botei fita isolante no LCD para só ver o quadrado central da imagem. A composição, a posição dos elementos, a exposição, isso é a matéria do instante do click. Mas depois há outro momento, momento no qual estou sozinho com a matéria prima, que é a imagem bruta digital, e nela persigo fazer uma narrativa em um sentido definido, sentido esse que fica amortecido pela característica da imagem digital como sai da câmera. Gosto também desse momento, é um momento introspectivo e, paradoxalmente, táctil, a matéria prima responde ao tratamento e vamos seguindo as modificações, seguindo um caminho que é parcialmente sugerido pela própria resposta da matéria.

Por vezes fico sozinho diante da tela tratando e lembro-me da infância quando desenhava sozinho no meu quarto.

Dito isso, volto aqui ao que falei no início. E, geral são mostradas fotos preparadas para web, as primeiras abordagens delas. Fotos que sofreram uma primeira intervenção, e a maioria, como esta, não sofrerá uma segunda nunca. Quando a foto me agrada muito, então começo tudo de novo a partir do zero porém já tendo “vivido” com aquela foto, e geralmente consigo um resultado mais refinado, mas isso só para poucas com objetivo diverso da WEB.

Obrigado pelo comentário, é uma interessante visão a sua, não o vejo errado, mas a fotografia como é hoje me empurra para certas direções onde estão, suponho, as melhores oportunidades do meio.

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Obs: A fotografia mostrada é resultado de uma brincadeira. Botei, em uma câmera compacta, duas tiras de fita isolante nas laterais do LCD de modo que sobrasse apenas o quadrado central. Com isso posso pensar na composição quadrada no momento mesmo do click, e o crop posterior, embora seja um crop do arquivo, não é um crop em relação ao ato compositivo.

Written by Ivan de Almeida

15 de janeiro de 2012 at 7:47 pm

PARA QUEM?

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Para quem?

o1 de janeiro de 2012

A única identidade que a gente reconhece na psicanálise é a solução que cada um encontra ao seu gozo – a não existência da relação sexual. -Teresa Genesini (1)

Venho percebendo que muito do meu prazer de fotografar não está em produzir uma grande imagem, mas sim em jogar um jogo visual que tem limites, um pequeno jogo criativo no qual uma câmera e uma circunstância, e depois uma abordagem de desenvolvimento da imagem sejam o escopo, e a produção da imagem visualmente atraente ou instigante é apenas um parâmetro, mais que uma finalidade. Um parâmetro do jogo.

Não há como não deixar de reconhecer ser isso uma atitude onanista. Jogar jogos consigo mesmo, mais ou menos indiferente à receptividade do mundo, essa também tão somente um parâmetro e não exatamente a finalidade, é uma espécie de onanismo.

Ontem, dia 31 de dezembro, véspera de 2012, saí de bicicleta com uma câmera compacta no bolso pedalando pela orla. Havia preparado a compacta colocando no LCD (ela não tem viewfinder) duas tiras de fita isolante, uma em cada lateral, deixando apenas um quadrado no meio para ver a imagem. Meu objetivo foi fazer fotos quadradas, mas sem para isso recortar posteriormente uma foto feita com outro raciocínio compositivo. Queria honestidade na composição, queria que a foto exprimisse meu raciocínio visual da hora do disparo. Então as fitas isolantes redefiniam o espaço compositivo de modo que depois o recorte se tornou apenas eliminação do que já não era fotografia. Explico: Um dos meus dogmas pessoais, que aplico ao meu fotografar, é não fazer recortes corretores na fotografia. Não julgo o mérito da fotografia alheia por isso, mas a minha faço assim, e quando vejo a necessidade do recorte sinto isso como um atestado de falha, um atestado de que minha análise visual foi fraca diante da circunstância, ao mesmo tempo em que me rejubilo quando percebo o acerto na composição com o frame inteiro.

Ora, quem me obriga a esse jogo? Ninguém. Sei que há outros fotógrafos com igual dogma, e, naturalmente, admiro suas fotografias, esse viés as faz mais interessantes para mim porque posso perscrutar na foto o raciocínio visual que governou sua feitura, posso pensar junto, pensar em paralelo, entender o jogo. Mas fora desse prazer estético meu, o mundo não me obriga a não recortar.

Fazer o LCD quadrado para fotografar quadrado nada mais é que introduzir uma regra no jogo, regra essa que será indiferente ao observador só afetando o autor no seu processo de feitura.

Nessa altura sou obrigado a concordar com o Lacan: não existe relação sexual! (1) Esta conclusão lacaniana, que aprofunda o pensamento freudiano, espanta quando a ouvimos pela primeira vez (embora quando a ouvi pela primeira vez tenha pensado comigo mesmo: “é óbvio”), mas dá conta do fato simples de que a pulsão nasce do organismo, não vem de fora. O fato de o organismo buscar no que está fora o desaguar das tensões da pulsão não significa que o que está fora, o outro, seja a razão da ação. Seguindo a idéia da Autopoiesis do Humberto Maturana (2) e do Francisco Varela, toda ação do organismo visa restaurar seu estado de equilíbrio homeoestático. É nisso que está o impulso, não no externo, no outro, na Arte (no caso da fotografia), na Fama, na Glória. Essas coisas são apenas respostas específicas, contingentes e aparentes para algo que não é nem específico, nem contingente, nem aparente.

Quando se diz que essas coisas são as respostas, seguindo a idéia do Lacan (com alguma liberdade, pela qual o Lacan não é responsável e os lacanianos ficariam horrorizados), se está mentindo. Está-se dizendo que as relações sexuais são possíveis, ou, estendendo o conceito, que fazemos alguma atividade para os outros. Ora, nossa vida em sociedade parece exigir mentirmos, é sempre preciso, parece, elegermos uma causa, uma meta transcendente, nobre, uma busca “séria”, quando na verdade tudo o que fazemos ou é mera ação para provermo-nos de alimentos, ou então onanismo – falsa relação sexual. Quando dizemos que nosso objetivo não está exatamente na imagem que ao ser exposta seja reconhecida pelo outro como bela ou boa, quando dizemos que no fundo o outro não importa, que nosso processo criativo não é voltado para o outro senão parametricamente, parece que estamos dizendo um absurdo e estamos cheios de soberba e de pretensão vazia, que nos pretendemos “artistas incompreendidos” ou outra coisa ridícula qualquer, mas de fato não é nada a não ser o reconhecimento de que não existe relação sexual, ou seja, não é para o outro que nós produzimos, e o outro é tão somente um parâmetro.

Porém, isso não esgota a coisa, porque, bem ou mal, buscamos rondar a estética que é reconhecida como estética. Ou seja, o outro, embora não seja o motivo, mantém-se como parâmetro. A determinação prática da não relação, apesar de tudo, implica em um acontecer (um fazer) dentro da cultura, dentro dos valores formais e narrativos de uma cultura, mesmo quando a obra aparentemente os contesta. Somos dentro dessa cultura, que, por isso, conforma tudo.

Poderíamos dizer, no caso da fotografia, que nela só há duas posições: autoria e mentira (ressalvando aquilo que se faz, bem ou mal, para o sustento). Mentira é tudo o que não é autoria, tudo aquilo que é feito com a ilusão de ser objetivamente bom, de ser pautado por parâmetros externos sem ambigüidade e portanto validadores. Aí também há onanismo, mas um onanismo iludido que se ignora, imaginando haver valores e objetivos externos. Na autoria também há mentira, aliás, sempre há alguma, mas sobre outros pontos.

O autor namora a si mesmo. Não o mundo, não o observador de suas fotos.

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(1) http://www.psicanaliselacaniana.com/mural/textos/jorgeForbes_NoIPLA_asDuasClinicas.html

(2) http://pt.wikipedia.org/wiki/Humberto_Maturana